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Sua Majestade Fidelíssima

SMF - Parte I - Capítulo III

A APOTEOSE DA REALEZA ABSOLUTA

 1. A deificação/heroização da pessoa do rei: "Não se ofenderam os homens fazer deuses aqueles que tantas vezes os quis persuadir a lisonja; porque quanto mentiu a adulação diante de Alexandre, que os influía, desmentiu logo a seta que o molestava; porém como o coração do homem seja altivo e estranho da nobreza de alma, coisa natural parece que pois se não pode fazer divino, nunca se escusa de soberano". [D. Francisco Manuel de Melo, Tácito português, Livro IV. (séc. XVII)]

A acção de divinizar ou heroicizar os monarcas foi sempre, já o afirmámos, um assunto controverso para o pensamento político ocidental desde a mais remota Idade Média. A divinização de um homem, e os reis nunca deixaram de ser considerados como seres humanos, colidia de facto com o monoteísmo cristão(1), fazendo ressurgir a espectro da idolatria e paganismo, tão severamente exprobrados no Antigo Testamento e no Apocalipse - recheados de alusões aos castigos infligidos por Deus ao povo judeu por este venerar os idolos vãos e demónios(2) -, textos bíblicos que encontramos frequentemente referenciados e citados nos catecismos, manuais de confissão, exercícios espirituais e livros de temática político-religiosa editados ao longo do Antigo Regime.

A sacralização do poder régio, contudo, surge de modo irrefragável nas obras dos teóricos políticos até à época iluminista, nalguns deles de forma expressa, noutros, a maioria, implícita, num compromisso difícil de entender a nível religioso mas compreensível em termos políticos. Não é nosso propósito enveredar pela análise do assunto do ponto de vista teológico (nem sequer estamos para isso preparados), mas sim averiguar as vantagens que resultam da crença no direito divino dos reis e na sua abusiva extrapolação (porque muitas vezes aceite de maneira algo ambígua, ou pelo menos não liminarmente rejeitada) com vista à apoteose do monarca. Como explicar a condescendência da Igreja, senão mesmo a sua colaboração activa, em matéria de tanto melindre? A longa citação adiante transcrita parece-nos a este propósito esclarecedora:

 

Consideremos o direito divino dos reis por um momento. Se não pensarmos que existe uma boa razão para acreditar na existência de um Deus pessoal, que ordena que vivamos de acordo com certos géneros e estruturas sociais, então esta crença será imediatamente qualificada como irracional (o que não é negar que a crença respondesse a necessidades psicológicas reais). Mesmo que acreditemos em Deus, se não acreditarmos que a Igreja tem um acesso especial aos seus desejos, pensaremos que o direito divino dos reis era e é uma doutrina irracional. E finalmente, mesmo os crentes católicos admitirão que o apoio da Igreja à monarquia na Idade Média era tanto baseado em considerações políticas como na revelação ou na teologia ortodoxa. Em suma, à crença no direito divino dos reis falta, e sempre faltou, uma base racional adequada.

Como surgiu então a crença? A resposta habitual apelaria em parte a factores políticos e económicos (não temos que ser marxistas para admitir que estes factores estão entre os determinantes da ideologia) e em parte a factores psicológicos. O conforto fornecido pela crença num Deus pessoal e numa vida futura é óbvio, e também o é, talvez, o conforto fornecido ao crente numa igreja infalível e numa ordem social designada divinamente. Em suma, os determinantes reais desta crença foram a gratificação narcisista do eu e o condicionamento social.(3)

Em suma, é evidente que a dinâmica do processo de centralização do poder real, desde os seus primórdios medievos até ao apogeu no século XVIII, procede de causas objectivas - de cariz político-económico - e subjectivas - de natureza psicológica. Com efeito, numa sociedade profundamente religiosa e hierocrática, a supremacia do poder régio, cuja preeminência raia o etéreo, só é possível se o múnus real for sacramentalizado, apresentando-se os monarcas como interlocutores privilegiados de Deus, uma espécie de mediadores entre o Criador e os seus vassalos, função demiúrgica indispensável à salvação dos crentes que, se não atinge o plano divino propriamente dito, é pelo menos sacerdotal(4).

Por conseguinte, não admira que na época Stuart os publicistas políticos tenham ido muito além do simples reconhecimento da origem divina do poder humano dos reis. Sir Robert Filmer, por exemplo, considera a monarquia o melhor sistema de governo porque, em seu entender, é aquele que melhor caracteriza a unidade e hierarquia inerentes à ideia metafísica então denominada de Grande Cadeia do Ser(5), conforme escreve em 1652 no prefácio das Observations upon Aristotle's Politiques(6). Anos antes, em 1610, Jaime I fora bastante mais explícito sobre este ponto num discurso dirigido aos parlamentares, em que qualifica o estado da monarquia como a coisa mais suprema porque os monarcas não são apenas representantes de Deus na Terra, sentados no trono de Deus, mas até pelo próprio Deus são considerados deuses, segundo atesta a Bíblia e a própria realidade dos factos, pois os reis, à semelhança de Deus, possuem o poder arbitrário de criar, destruir, fazer e desfazer, conceder a vida ou condenar à morte, engrandecer ou envilecer as dignidades humanas, julgar sem terem que prestar justificações a ninguém a não ser ao próprio Deus(7). No reinado seguinte são frequentes declarações do mesmo jaez proferidas pelos altos dignitários eclesiásticos e civis, dizendo o bispo Henry King (capelão da coroa) que todos os reis...são medalhas fundidas no molde de Cristo e Sir Thomas Wentworth, "Earl" de Strafford, perante Carlos I no dia da investidura deste, que os reis no trono são imagens sagradas da divina Majestade(8). A adoração da imagem do monarca como um ícone torna-se, neste contexto, uma obrigação dos bons súbditos, cuja submissão à vontade do soberano divinizado é interpretada por Henry Peacham em The duty of all true subjects to their king (1639), como um antídoto contra o pernicioso espírito de rebelião latente na sociedade(9).

Ao contrário do que sucedeu na Grã-Bretanha, país onde a edificação da monarquia absoluta foi interrompida (1649), formalmente restaurada (1660) e por fim extinta (1688)(10), em França, desde os primórdios do século XVII até finais do XVIII, é possível assistir à evolução, apogeu e decadência da tentativa de deificação dos soberanos. Predestinados por Deus para reinar - à semelhança dos demais soberanos europeus (apesar de não trazerem qualquer sinal físico comprovativo da sua sacralidade, como sucedia com os Stuarts e Habsbourgs(11)) -, ungidos na catedral de Reims pelo arcebispo local - Ungo te in regem, de oleo sanctificato, in nomine Patris et Fili et Spiritus Sancti(12) -, os monarcas franceses seiscentistas e setecentistas cumprem no dia da sua entronização um cerimonial que distingue o ritual da sagração do acto da coroação (este decorre imediatamente daquele(13)); nos dias seguintes visitam os enfermos e, tocando nas escrófulas pronunciam a frase O rei toca-te, Deus curou-te, demonstrando dessa forma, no dizer dos cronistas, a graça de sarar as doenças outorgada em exclusivo pelo Senhor ao Rei Cristianíssimo, poder privativo que Luís XIII, Luís XIV e Luís XV exercitaram nos dias subsequentes à sua coroação em 868, 3000 e 2000 doentes(14), respectivamente. Esta cerimónia repetia-se todos os anos durante a celebração das festas religiosas mais importantes, com tal sucesso, que até os espanhóis e alemães cruzavam a fronteira em busca de alívio para os seus males, costume mal aceite, como é óbvio, pelo imperador apostólico e rei católico, enciumados com o prestígio político e religioso que esse dom divino naturalmente concedia aos monarcas franceses(15) [Fig. 24].

A imagem do rei como vigário de Deus atinge o zénite no reinado de Luís XIV, concorrendo com a do Rei-Sol, embora esta última tenha sido mais difundida na época e exerça um maior fascínio nos historiadores contemporâneos, talvez devido à sua singularidade, carácter inovador e por simbolizar melhor o classicismo francês seiscentista. Mas, tal como a imagem solar de Luís XIV não tornou este monarca um simples émulo de Apolo mas a encarnação do próprio deus olímpico(16), também a imagem de delegado de Deus evolui, comedidamente é certo, no sentido de uma crescente consubstanciação da divindade na pessoa do monarca, ideia implícita num sermão sobre os deveres da realeza proferido por Bossuet na presença de Luís XIV durante a Quaresma de 1662, onde o orador, a dado passo, chega a asseverar que os reis são deuses: - vous êtes des dieux(17) -, concepção que viria a reafirmar anos depois, ligeiramente modificada, na Política tirada das próprias palavras da Sagrada Escritura, onde considera a divinização da realeza uma das quatro características principais da monarquia francesa(18). Isso não quer dizer, porém, que Luís XIV, apesar de se considerar como o último representante de uma longa cadeia de soberanos-deuses, tenha alguma vez ambicionado ser adorado como um Deus único(19), pois apenas desejava garantir a cega obediência dos súbditos(20). No dia da sua sagração em Reims o Rei-Sol submeteu-se, como o haviam feito todos os seus antecessores, ao acto de humildade de tirar a coroa durante a leitura do Evangelho, tradição que Luís XV também observou e reforçou, pois repetiu-o por ocasião da elevação da óstia(21).

Esta situação evolui, ao longo do século XVIII, para um crescente enfraquecimento da imagem do rei taumaturgo, chegando Voltaire a afiançar em 1736, na introdução do Essai sur les moeurs et l'esprit des nations, que os milagres realizados por intercessão dos reis eram simplesmente fruto da superstição popular(22). Ao invés de Luís XIV, o seu bisneto e imediato sucessor, Luís XV, jamais pronunciou a frase tradicional - O rei toca-te, Deus curou-te -, mas sim, o rei toca-te, Deus cura-te(23), pondo deste modo termo a uma conexão imediata entre a acção do rei e o guarecimento do enfermo, doravante apenas uma hipótese provável e não uma garantia. Não espanta, por conseguinte, que os testemunhos da convalescença de doentes tocados pelo monarca fossem recebidos com relativa indiferença na corte ainda nos primórdios de setecentos, como acontece em 1723 com o secretário de estado La Vrillière ao ser informado pelo marquês de Argenson do restabelecimento de um achacado tocado por Luís XV - As provas são inúteis; todos conhecem bem o dom divino dos nossos reis -, o que já não se verifica em 1775 com o seu homólogo Bertin, mais interessado em receber depoimentos válidos (do médico, do enfermo, dos notáveis da região, etc.) sobre uma cura perpetrada por Luís XVI - Não podemos desdenhar as provas experimentais do milagre -(24). Este monarca, aliás, deveria ter sérias reservas sobre os seus poderes taumatúrgicos, pois desde a infância que ouvira o seu mestre - La Vauguyon - dizer-lhe não serem os reis, pela natureza, diferentes do comum dos mortais(25), uma certeza que o príncipe exprimia do seguinte modo:

 

Le plus vil, le plus misérable des hommes remonte par une suite de cent vingt degrés au plus jusqu'à Noé... Ainsi, par l'origine primordiale, tous les hommes sans exception me sont égaux.(26)

Somente o Rei Cristianíssimo, já o dissemos, teve a pretensão de considerar a sua grandeza apenas inferior à de Deus, conforme sustentava Joachim Du Bellay no centésimo nonagésimo primeiro soneto de Les regrets - Car rien n'est après Dieu si grand qu'un roi de France -, ao contrário dos outros monarcas católicos que, apesar de não reconhecerem superior no administração dos seus domínios, jamais puseram em causa a preeminência do poder pontifício no plano espiritual. Isso não significa, contudo, que também eles, almejando o poder absoluto, tivessem permanecido alheios à tentação da exaltação divina das suas pessoas, inclinação que em nossa opinião transparece, por exemplo, numa gravura barroca representando a apoteose de D. João V [Fig. 25] ou no sermão proferido por Frei Inácio de São Caetano em 1762 na Capela Real do Palácio da Bemposta (durante a comemoração do nascimento do príncipe da Beira D. José), onde o orador compara a monarquia lusitana à israelita, pelo facto de os reis portugueses, e em particular D. José I, possuírem virtudes idênticas às dos reis bíblicos:

 

No tempo da Lei escrita escolheu Deus a um povo para reino seu, e procurou a um homem, que fosse muito semelhante, e conforme ao seu coração, para o fazer príncipe deste seu povo fiel, do qual ele mesmo se intitulava rei: Quaesivit Dominus sibi virum juxta cor suum, et praecepit ei Dominus, ut esset Dux super populum suum. Ora eu julgo que assim como o povo da Lei escrita era figura do fidelíssimo povo da Lei da Graça, ou de Portugal, pois são os dois povos, que em toda a carreira dos séculos Deus particularmente escolheu para reinos seus; assim o homem, que Deus procurou para o fazer príncipe daquele seu povo fiel, foi figura de outro homem, que nos tempos futuros de Deus havia de procurar para príncipe deste seu povo português; e que há-de dar a este homem as mesmas máximas de príncipe, que deu àquele para governar ao seu antigo povo. Ainda que a escritura diz que Deus procurou a este homem, não se deve entender que David tinha já as qualidades para ser rei, quando Deus o procurou; mas o mesmo foi procurá-lo Deus para príncipe, que orná-lo de todas as qualidades, que lhe eram necessárias para ser um príncipe muito perfeito, muito semelhante, e conforme ao seu coração: Quaesivit Dominus sibi virum juxta cor suum. Temos a figura assim do reino, como do nosso príncipe. O povo fiel da Lei escrita foi uma figura do povo fiel da Lei da Graça; e o nosso príncipe é o homem, que o Coração Santíssimo de Jesus procurou para o fazer príncipe deste seu povo; e o nosso agradecimento há-de ser pedir muito a Deus que infunda na sua alma as mesmas qualidades, que concedeu a David, para ser muito semelhante, e conforme ao Santíssimo Coração de Jesus.

Eu bem sei que se o nosso príncipe puser os olhos nas vidas, nas acções, nas virtudes, e nos exemplos dos seus augustíssimos avós, e sereníssimos pais, como já aconselhava São Paulo aos hebreus a respeito de Abraão, não terá necessidade, senão de copiar em si o que vir neles, para ser muito conforme ao Coração de Jesus, como David foi ao de Deus, porque nelas achará as lições mais vivas, e de maior eficácia para aprender as máximas de uma política cristã; e será não só bom rei, mas cristão perfeito. Não teríamos nós mais que desejar. Porém por não estar individuando estas virtudes com ofensa da modéstia, de quem obra as mais heróicas acções de rei, e de cristão, sem querer por elas elogios, direi as qualidades, que Deus infundiu na alma de David, para o fazer um príncipe do seu antigo povo muito semelhante, e conforme ao seu coração, e serão as mesmas, que o mundo admira no nosso augustíssimo monarca. Vão os portugueses vendo o que foi David, admirando o que é José, e pedindo por agradecimento ao Santíssimo Coração de Jesus, que infunda as mesmas na alma do nosso príncipe, a quem escolheu para governar.(27)

Estas afirmações do confessor da princesa do Brasil, a futura rainha D. Maria I, estão longe de traduzir a sacramentalização pura e simples da realeza portuguesa, mas insinuam uma relação ímpar entre a divindade e o rei de Portugal, porque só este, nos tempos da "Lei da Graça", reina sobre um povo eleito por Deus(28). Seria desmesurado, porém, extrair das palavras de Frei Inácio de São Caetano a conclusão apressada de que em Portugal existiu uma intenção deliberada de deificar os monarcas, pois, mesmo no auge do absolutismo, os nossos reis observaram sempre o costume de não serem sagrados e coroados no acto da sua aclamação, reconhecendo pública e solenemente a sua "humana fraqueza" ao recitarem o tradicional juramento régio proferido no decurso da cerimónia(29).

Sem deixar de ter um evidente carácter simbólico, a aclamação dos reis de Portugal jamais alcançou, em termos rituais, a importância da sagração dos monarcas franceses; com efeito, o simples gesto de prestar juramento com a mão direita sobre o missal e a cruz numa cerimónia realizada ao ar livre e na presença da multidão, está longe da solenidade cultual da sagração de Reims, bem evidente na gravura da entronização de Luís XIV executada em 1654 por Lepautre [Fig. 26], ou no quadro de Gérard retratando a coroação de Carlos X (1825), onde houve o propósito revivalista, bem ao estilo romântico, de recriar, com alterações pontuais, mas frisantes, os habituais ritos e juramentos(30).

O caso de D. João V parece-nos deveras expressivo. Conhecendo o entusiasmo deste monarca pela pompa da liturgia pontifícia(31) -que tentou imitar, senão mesmo superar, na instituição da Patriarcal (para desespero de Clemente XI(32))-, é sem dúvida significativo que O Magnânimo tenha seguido escrupulosamente na sua aclamação o protocolo da exalçação dos monarcas instituído pelo fundador da dinastia de Bragança, sendo impossível detectar qualquer intento de reforçar a vertente religiosa de uma função eminentemente profana e cívica, mesmo que isso implicasse o retorno ao hábito de a realizar no interior de um templo ou o recobro de alguns cerimoniais, nomeadamente aveneração de relíquias(34). Esse respeito pela tradição bragantina persiste, outrossim, na atitude do rei de se abster de cingir a coroa em eventos públicos(35), um atributo real normalmente usado pelos nossos monarcas quatrocentistas, como o comprovam alguns testemunhos coevos(36). Esta inovação, introduzida por D. João IV, nunca foi posta em causa, tendo mesmo sido zelosamente cumprida pelos gravadores(37), escultores e pintores setecentistas nas representações de aparato dos monarcas, onde normalmente a mão direita do soberano aponta -ou então mantém-se suspensa, num gesto protector- para os símbolos do poder real (coroa e ceptro) depositados sobre uma mesa(38). Por esse motivo, não encontramos em Portugal quadros semelhantes aos das coroações de Maria de Médicis [Fig. 27] ou de Carlos II de Stuart pintados, respectivamente, por Rubens (1610) e Wright (1661), nem emblemas da potestade régia em que o rei de Portugal apareça entronizado, como acontece no "Grande Selo de Majestade" do reino de França, cujas insígnias, ao contrário do que sucedeu no caso português, se tornaram progressivamente mais numerosas e elaboradas à medida que foi aumentando o poder decisório da realeza cisalpina(39). Ainda assim, a aspiração de D. João V de promover a sagração da monarquia afigura-se-nos inquestionável; algumas atitudes do monarca parecem mesmo confirmar a sua secreta ambição de se tornar numa espécie de rex-sacerdos(40) (rival do rei bíblico Melquisedec, com toda a carga simbólica que essa analogia implica), investido de uma sacra real majestade, para utilizar os termos empregues por D. Luís Caetano de Lima na dedicatória de uma descrição da cidade de Roma que, a pedido do próprio monarca, redigiu em 1722(41).

Assumindo como verosímil a comparação entre Melquisedec e D. João V (implícita nas atitudes e decisões do monarca português), penso ser útil reflectir um pouco sobre os trechos bíblicos referentes ao enigmático soberano de Salém (topónimo de Jerusalém, segundo os exegetas), pois isso poderá facilitar a compreensão dos secretos desígnios de D. João V quanto a uma possível sacramentalização da instituição monárquica, bem como o sentido e extensão dessa ambição numa perspectiva puramente eclesiástica. Na sua dupla qualidade de rei e sacerdote, Melquisedec foi o portador do pão e do vinho a Abraão após a vitória obtida por este sobre Codorlaomor, dando também a bênção ao patriarca que, por seu turno, aceitou pagar-lhe o dízimo em sinal de submissão à sua autoridade real(42). É reportando-se a esta passagem do Génesis e também a um salmo dos Livros Proféticos e Sapienciais onde Melquisedec é visto como uma prefiguração do Messias (através da identificação com o rei David)(43), que S. Paulo na Epístola aos Hebreus reprova tal assimilação, considerando o sacerdócio de Jesus Cristo superior ao do rei de Salém e dos sacerdotes levíticos(44); contudo, o apóstolo não põe em causa a atitude do pastor de Haran de proceder ao pagamento do dízimo, considerando essa atitude como um dever do súbdito e o reconhecimento do domínio temporal de Melquisedec(45). Sublinhe-se, no entanto, que a tradição patrística interpretou como um sacrifício eucarístico a oferta do pão e do vinho feita por Melquisedec a Abraão (interpretação ainda vigente no cânone da missa), aceitando, por essa razão, ver neste rei o legítimo representante das prerrogativas reais e sacerdotais, chegando mesmo alguns Padres da Igreja a considerá-lo como a personificação do próprio Filho de Deus(46).

Estas "interpretações", reafirmamo-lo, sobretudo no caso português (onde os testemunhos coevos são, talvez propositadamente, um pouco vagos quanto a estes aspectos) devem ser encaradas com cautela pelos historiadores, mas não devem inibí-los de reflectir sobre um assunto deveras sugestivo. Afigura-se-nos legítimo sustentar, porém, que a partir de meados de setecentos se detectam sinais de algum modo denunciadores da intenção de sacralizar a monarquia e a pessoa dos príncipes, sobretudo nos elóquios proferidos em momentos solenes ou em textos a estes referentes (leia-se a oração fúnebre em memória do Príncipe do Brasil, declamada por Frei Manuel do Cenáculo np dia 16 de Dezembro de 1788 [Ver Anexo 22]. A aclamação de um novo soberano parece ser, na verdade, o momento azado para discorrer sobre a condição divina da realeza, seja pondo em relevo o carácter "sagrado" do juramento enunciado pelo rei nessa cerimónia(47), ou pretendendo demonstrar a singularidade do dia escolhido para a sua realização, buscando os panegiristas argumentos religiosos e históricos que, relacionados entre si, visam reforçar a concepção sacral da função régia. Esta realidade pode, com efeito, não ter grande significado, mormente se pensarmos que o calendário religioso celebra todos os dias um mistério da fé, acontecimentos da vida de Jesus ou venera um santo, sendo sempre possível, por conseguinte, aprazar os fastos da monarquia para qualquer data. Contudo, convém esclarecer que os factos citados não são escolhidos a esmo; com efeito, parece existir um critério ao qual subjaz, de modo mais ou menos explícito, o intento de sagrar a monarquia, como em nosso entender acontece no Gabinete Histórico de Frei Cláudio da Conceição, quando o escritor evidencia a singularidade do dia da aclamação de D. João VI(48). Um excelente exemplo daquilo que vimos afirmando é o sermão comemorativo da aclamação de D. João IV recitado por Frei José Manuel da Conceição na catedral de Coimbra no dia primeiro de Dezembro de 1745, onde o prelado, embora diferencie as missões espiritual e temporal adjudicadas por Cristo, respectivamente, à Igreja Católica e à Monarquia Portuguesa (nas pessoas de São Pedro e D. Afonso Henriques), não deixa de estabelecer entre elas uma complementaridade que as torna inseparáveis do objectivo ulterior de dar prossecução à incumbência cometida por Deus ao seu Filho, de remir e regenerar a humanidade pelo incomparável preço das suas sanguinolentas chagas, feridas essas que o Messias viria depois a mostrar ao fundador do reino de Portugal como firme garantia de um projecto divino destinado a ser cumprido por este monarca - o mais santo entre os reis portugueses - e seus sucessores(49).

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A sacralização da monarquia absoluta pode ser um sinal de debilidade e não de solidez política. O desejo de convencer os súbditos da insensatez de contestar a realeza ou atentar contra a integridade física do rei - porque não há crime mais hediondo do que rebelar-se contra a ordem instituída por Deus -, revela bem o temor suscitado pelas revoltas populares que eclodiam em todas as coordenadas geográficas da Europa do Antigo Regime. O grande empenho posto pelos juristas franceses quinhentistas e seiscentistas em exaltar o lustro da realeza e sobrevalorizar o seu poder, visava essencialmente pôr cobro a um círculo vicioso de dissensões internas que, desde as Guerras de Religião até às Frondas dos Príncipes, não haviam cessado de dilacerar a coroa e submetê-la aos mais cruéis vexames. É necessário recordar, para melhor explicitarmos a nossa opinião, que quando Claude d'Albon considerou o rei de França a imagem do sol divino - De la majesté royale (1575)- (50), o infeliz Carlos IX morrera havia pouco (1574) e o trono era ocupado pelo seu irmão Henrique III, dois soberanos muito dependentes da poderosa influência da mãe de ambos, a prepotente Catarina de Médicis, cuja morte em Janeiro de 1589 viria, por fim, libertar o trono da tutela da matriarca e permitir a Henrique III reconciliar-se com Henrique de Navarra (seu imediato sucessor), acontecimento que, aliás, levaria o fanático monge dominicano Jacques Clément a apunhalar o rei poucos meses depois (1 de Agosto de 1589) (51).

Depois de alçado rei, Henrique IV foi vítima de mais de uma dezena de conspirações e atentados contra a sua vida(52), até que Ravaillac, também um frade, aproveitando a passagem da comitiva real pela estreita rua parisiense de La Ferronerie em 14 de Maio de 1610, saltou para o coche real e cravou o punhal no peito do rei. As causas do assassínio de Henrique IV de França, como foi desde logo compreendido na época, não se esgotavam em questões de índole exclusivamente religiosa (apesar de o reforço do galicanismo não agradar ao ultramontanismo católico(53)), mas também estavam relacionadas com a centralização administrativa e política fiscal implementada pelo ministro das finanças Sully, que começavam a afectar seriamente os privilégios do clero e da nobreza, situação que desencadeou nestas duas ordens uma enorme animadversão contra o rei e o seu valido, enfraquecendo ainda mais os laços de lealdade que as uniam à coroa(54). Esta circunstância, aliada à irreversibilidade da política de reformas já empreendida, incentivou a regência de Maria de Médicis a encarar o regicídio como mais um sinal da imperiosa necessidade de fortalecer o prestígio da realeza junto do povo para, com o apoio deste, cercear o poder das elites(55). Ora, o expediente mais eficaz para assegurar a veneração da instituição real por parte dos vassalos mais humildes, em particular numa ocasião de profunda comoção popular, era precisamente insinuar a divinização do rei defunto(56), vontade que foi efectivada mediante recurso a uma política mecenática que "persuadiu" muitos literatos e artistas a louvar as excelsas qualidades do herói(57) e mártir(58) Henrique IV.

Havemos de reconhecer que esta estratégia da coroa surtiu os efeitos desejados em França. Quando Luís XIII entrou em Reims no dia da sua coroação, lia-se num dos monumentos efémeros erigidos para festejar o evento a frase a França desconhece o sol poente(59) e, à data do falecimento deste rei, uma oração fúnebre estabelecia de novo o paralelo entre o monarca moribundo e o ocaso solar, imagens que atestam ser já então uma realidade inequívoca a preeminência institucional do poder real em França(60). O resplendor do sol passa a emblemar o monarca francês, explicando Luís XIV nas suas Memórias (1662) as razões dessa escolha, fazendo sobressair a ideia de que só o astro-rei representa condignamente o glória, fulgor e acções do Rei Cristianíssimo(61). A preferência por um símbolo pagão, atributo, como já vimos, dos imperadores helenísticos e romanos(62), foi-se atenuando no decurso do reinado de Luís XIV por múltiplas razões: em primeiro lugar porque o inevitável envelhecimento do monarca tornaria ridícula a insistência na imagem apolínea do rei(63); depois, porque colidia com a mundividência cristã, desde sempre adversa às manifestações de celsitude clássica(64). A cristianização do Sol Real (para utilizar a expressão empregue numa biografia de Luís XIV recentemente publicada(65)), foi tentada, de um ponto de vista estritamente político (teorização da noção de jusdivinismo e delegação divina dos poderes), por vários publicistas no tempo de Luís XIII, como André Du Chesne - Les antiquités et recherches de la grandeur et de la majesté des Rois de France (1609) -, Antoine Favin - Le théâtre d'honneur et de chevalerie (1620) - e o futuro cardeal Bérulle num famoso libelo dirigido aos insurrectos huguenotes - De l'état et des grandeurs de Jésus (1622)(66) -, os quais explicam a razão de os reis franceses possuírem a honra de serem sóis pelo facto de haverem sido escolhidos por Deus para governarem um reino que é o esplendor do mundo e luz da Cristandade(67).

A esta conexão entre o rei e o sol era completamente estranha, como é óbvio, qualquer intenção de subalternizar a religião cristã e vivificar os ritos pagãos, propósito que seria completamente absurdo numa monarquia católica do século XVII. O interesse desta apropriação era, na realidade, de ordem fundamentalmente política, como esclarece o próprio Rei-Sol quando afirma que só o sol pode espelhar de modo fidedigno a grandeza, brilho, virtudes e finalidade da instituição real(68). Além desta analogia existiam outras, igualmente de feição classicizante e utilizadas pela bem orquestrada campanha de propaganda régia posta em acção no início do reinado de Luís XIV(69); a mais importante, porque duradoura e consequente numa perspectiva política e cultural, foi o empenho posto pelo rei e o ministro Colbert em financiarem um conjunto de obras literárias e plásticas que visavam transmitir a ideia de que Luís XIV era um Alexandre Magno ressuscitado, um fito atingido com pleno sucesso por Charles Le Brun, autor de alguns quadros sobre a vida do imperador helenístico destinadas aos Grands Appartements de Versalhes(70). As telas deste talentoso pintor áulico reportam-se a episódios edificantes da vida do conquistador macedónio [Fig. 28], onde este é retratado como um príncipe destemido e virtuoso(71), atitude igualmente seguida por outros artistas representados na pinacoteca real, como é o caso de Jean Jouvenet - A família de Dário aos pés de Alexandre (1680) -, Jean-Baptiste de Champaigne - Alexandre trazendo a Aristóteles animais exóticos para este os estudar (1673), Pierre Mignard - As rainhas da Pérsia aos pés de Alexandre (1689) -, e um alto-relevo de Pierre Puget - Alexandre e Diógenes (1693) -(72).

Além das artes plásticas, sem dúvida um dos mais directos meios de propaganda política nas sociedades do Antigo Regime (caracterizadas por um elevado índice de analfabetismo), também a literatura e o teatro franceses glosaram até à exaustão a temática alexandrina. Yves Duchat compara em 1624 as virtudes de Luís XIII às de Alexandre Magno(73), enquanto Nicolas de Soulfour considera o imperador helenístico, numa missiva endereçada em 1629 ao mesmo monarca, um herói guerreiro digno de ser imitado e superado(74), exortações e argumentos que ilustram, no essencial, o teor de muitos outros escritos similares redigidos na França seiscentista(75). A fama de Alexandre Magno, a que andava ligada o "culto" de muitos outros personagens da civilização e cultura greco-latinas, atingiu proporções julgadas perigosas nos círculos católicos franceses mais ortodoxos - jansenistas (Pascal(76) e Duguet(77)), moralistas (La Rochefoucauld(78)) e quietistas (Fénelon(79)) -, tendo sido também verberadas, com maior moderação, é certo, pelos regalistas (Bossuet(80)). Mesmo fora da esfera religiosa é possível encontrar testemunhos contrários à concepção de exemplaridade de Alexandre Magno, conforme sucede com alguns libertinos (Boileau(81)) e académicos (Gilbert Saulnier; Paul Tallemant(82)). A esta conjunção de recriminações, que sobem de tom no decurso do governo autocrático de Luís XIV, não é estranho o embaraço de ver incensados heróis pagãos nas aras de uma realeza cristã(83), embora o intuito primacial seja o de censurar, ainda que de modo implícito, a megalomania do rei, responsável pelo esbanjamento dos recursos do reino em guerras e faustosas manifestações de aparato.

Os regalistas, em especial Bossuet(84), eram tolerantes com a pompa da monarquia, cientes da importante função política que ela desempenhava na "construção" da imagem do monarca absoluto(85), mas os jansenistas, quietistas, moralistas e libertinos serviam-se da crítica à opulência da corte para recriminarem directamente Luís XIV. A perigosidade política destas correntes de pensamento colocava-se precisamente a esse nível, mormente no caso do jansenismo, cuja moral favorecia objectivamente a destruição do ideal de herói difundido pelo absolutismo louis-quatorzien, como facilmente podemos deduzir do "pessimismo moral" implícito nas Máximas de La Rochefoucauld ou, ainda com maior evidência, num tratado do abade Jacques Esprit sobre a falsidade das virtudes terrenas(86), onde este oratoriano expõe uma visão tão depreciativa da natureza humana que, mais tarde, veio a ser comentada por Voltaire com acrimónia(87). Luís XIV e Colbert estavam alertados para este problema, procurando dar-lhe uma resposta não apenas política e teológica (sem dúvida os aspectos mais privilegiadas pelos historiadores que se debruçaram sobre a polémica jansenista) mas também cultural, em particular chamando às academias parisienses intelectuais avessos aos ensinamentos do "Grande" Arnauld, de preferência aqueles que estivessem arrependidos de terem sido frequentadores assíduos da abadia cisterciense de Port-Royal des Champs, entre os quais avultam, pela sua importância no panorama da literatura francesa, Racine(88) e Perrault, o primeiro muito reputado na corte (recorde-se o bom acolhimento dado por esta à tragédia bíblica Esther, que chegou a inspirar um pintor francês oitocentista [Fig. 29]) e o segundo honrado por Colbert com um convite para ingressar na Petite Académie(89).

As exprobações à conduta de Luís XIV não eram, no entanto, destituídas de fundamento. Durante a juventude, o monarca, possuído de um fascínio quase doentio pela grandeza dos impérios clássicos(90), cuja imitação considerava essencial à afirmação do prestígio da monarquia francesa no interior e exterior do reino(91), chegou ao exagero, segundo reconhecem hoje vários historiadores(92), de assumir uma plena identificação da sua pessoa com a dos grandes vultos da Antiguidade (sobretudo com Alexandre Magno(93)), pretensão essa que, não sendo inédita (respeitava mesmo o costume helenístico(94)), o conduziu a extremos que levariam os detractores do seu governo a qualificá-lo de tirano e merecedor do triste fim reservado aos reis pagãos, numa clara apologia das teses tiranicidas defendidas pelos escritores políticos anti-absolutistas(95). Estas advertências, há que reconhecê-lo, tiveram efeitos concretos, verificando-se, no decurso do reinado de Luís XIV, um progressivo afastamento da propaganda real em relação à imagem de Alexandre Magno, doravante apresentado como um homem possuidor de algumas virtudes e muitos defeitos(96); em suma, um personagem histórico cujas acções colidiam com os princípios cristãos, o que provocava acesa polémica na opinião pública, afectando o prestígio do absolutismo régio(97).

Luís XIV nunca ignorou estas admoestações; bem pelo contrário, avaliou sempre a sua intensidade mas não esmoreceu ou fez grandes concessões aos adversários, pois, caso o fizesse, desacreditaria a autoridade real(98). Assim, se num primeiro momento aceitou substituir os heróis da Antiguidade pelos da história francesa (Clóvis era menos contestado que Alexandre Magno e São Luís [Fig. 30] ou Henrique IV mais virtuosos do que os heróis de Plutarco(99)), numa fase posterior, assumindo uma atitude egocêntrica, não só moldou os seus antecessores à sua própria imagem(100), como mandou Charles Le Brun embelezar a Escada dos Embaixadores e a Galeria dos Espelhos de Versalhes com as acções do seu reinado, inspirando-se o artista na iconografia romana, no intuito de frisar a intemporalidade desses feitos e conferir um carácter imorredouro ao governo do seu patrono (101). Estas pretensões do rei foram consideradas uma inadmissível manifestação de arrogância e criticadas por cortesãos ilustres, tendo ficado para a posteridade os reparos feitos pelo duque de Saint-Simon à mania das grandezas de Luís XIV(102) e as críticas veladas de Fénelon à altivez do soberano, considerada indigna da humildade cristã.

As concepções expendidas pelo arcebispo de Cambrai nas Aventuras de Telémaco a propósito da humanidade e mortalidade dos reis (tão sujeitos como qualquer vassalo às fraquezas humanas)(103), influenciaram fortemente a educação do duque da Borgonha (neto de Luís XIV) e dos demais delfins de França até finais do Antigo Regime, estando ainda bem presentes, no terceiro quartel de setecentos, nos conselhos dados pelo duque de La Vauguyon aos duques da Borgonha (neto de Luís XV) e de Berry (futuro Luís XVI e irmão do anterior), de quem era preceptor(104). Subsistiu o culto dos heróis clássicos e pátrios - em especial o dos reis franceses medievais -, mas perdeu-se a veleidade de os comparar - desfavoravelmente - ao monarca reinante, pretendendo-se somente incentivar este a imitar as sublimes virtudes daqueles(105). Na sagração de Luís XVI em 1772, a figura de César foi lembrada, mas é de todo inverosímil que o circunspecto monarca tenha visto nessa evocação algo mais do que o respeito pela multissecular e ecléctica iconologia real usada na cerimónia de Reims(106), não lhe passando decerto pelo espírito a ideia de se julgar a imagem rediviva do cônsul romano.

Muitos historiadores costumam ver em Luís XIV o genial criador de um eficiente e elaborado programa cultural e artístico quase exclusivamente consagrado a fins de propaganda política, cujo objectivo primordial era exaltar a realeza absoluta. Essa apreciação parece-nos aceitável se apenas tivermos em linha de conta a coerência e sistematicidade com que foi diligenciada essa intenção do rei e dos seus coadjutores, pois quanto ao emprego da simbologia clássica visando a glorificação da monarquia - nomeadamente no respeitante à heroização do monarca mediante recurso ao estabelecimento de paralelismos com os semideuses greco-latinos -, já o encontramos com idêntica finalidade no ocaso do século XVI em variadíssimos textos(107), e não só políticos, conforme constatamos na tragédia Henrique V (1600), quando Shakespeare equipara o soberano inglês a Alexandre Magno, com vantagem para o Lencastre(108), a quem o dramaturgo atribui a sensatez e modéstia de reconhecer a plena humanidade dos reis, em tudo iguais aos súbditos, salvo nos sinais exteriores do aparato(109). Nem sequer os aposentos de estado em Versalhes possuíam uma decoração original, pois, através das descrições chegadas até nós do desaparecido palácio madrileno do Bom Retiro, sabemos que predominava o vocabulário estético clássico, tendo mesmo Zurbaran, muito antes de Le Brun sonhar fazê-lo, ornado o Salão dos Reinos com emblemas alusivos aos Doze Trabalhos de Hércules, que encimavam uma dúzia de quadros representando os triunfos militares de Filipe IV(110).

Esta tradição remontava, em Espanha, à época de Carlos V(111), chegando mesmo a ter na obra mais conhecida de Saavedra Fajardo - Idea de un principe politico-cristiano representada en cien empresas (1640) - alguma interferência na formação moral e ética do príncipe(112), mas perdera boa parte do fulgor de antanho devido à lenta agonia do império dos Áustrias e à crise de autoridade que marcou o governo do débil Carlos II. A recuperação do modelo só viria a realizar-se com a elevação ao trono espanhol de Filipe V, agora manifestamente subordinado ao paradigma francês(113), pois o novo rei, que fora duque de Anjou e era neto de Luís XIV, nunca deixou de ser um profundo admirador do fausto versalhesco, tendo sempre acalentado a remota esperança de um dia poder vir a caber-lhe a sucessão da coroa francesa(114). Esse deslumbramento, alimentado pelas memórias da infância e adolescência, explica, na opinião dos historiadores(115), o desejo de mandar construir um palácio quase idêntico nas faldas da serra de Guadarrama, embora a imponente mansão  de La Granja de San Ildefonso pareça desmentir essa ideia, pois, no essencial, o edifício respeita a traça das construções levantadas na época dos Áustrias, e não as nóveis concepções arquitectónicas postas em prática por Le Vau e Hardouin-Mansart em Versalhes. Apenas os jardins contrastam flagrantemente com a sobriedade castelhana das fachadas, notando-se de imediato, sobretudo na estatuária dispersa pelos lagos, parterres e bosques, o gizamento de um plano destinado a promover uma nova imagem do monarca e, consequentemente, da dinastia por ele instaurada(116).

Semelhante tenção aparece também com toda a clareza nos projectos do padre Sarmiento para a decoração do Real Palacio Nuevo de Madrid, nome pelo qual era conhecido na época o futuro Palácio do Oriente (erguido no local do antigo Alcazar, devastado por um incêndio em 1734). As esculturas colocadas nos pátios e jardins deveriam a simbolizar a monarquia espanhola, fosse na sua diversidade geográfica e identidade histórica, ou nas prerrogativas e deveres institucionais a ela inerentes(117); acima de tudo, tal como acontecia em Versalhes ou Schönbrunn(118), pretendia-se transformar a nova edificação num novo palácio solar, ideia que só não foi levada até às últimas consequências por vontade do próprio rei(119), sempre muito escrupuloso em evitar a plena assimilação da sua pessoa aos simbolos apolíneos.

O historiador espanhol Miguel Moran, cujo pequeno ensaio sobre este tema temos vindo a seguir de perto, alerta-nos para a circunstância de esta atitude de Filipe V mostrar bem até que ponto as ideias de Fénelon moldaram o carácter do seu ex-pupilo(120), sustentando que o primeiro Bourbon espanhol apenas admitia o estabelecimento de um certo paralelismo entre a preeminência institucional da realeza e a posição cardinal ocupada pelo astro-rei no sistema heliocêntrico. Esta anuência do soberano, porém, não extravasava, na opinião de Moran, os limites da retórica, pois reduzia-se tão-só a uma metáfora com algum significado literário e artístico, mas sem grande conteúdo político-ideológico(121). Acresce, ainda, segundo escreve o mencionado historiador espanhol, não haver nada de inovador numa imagem que vinha sendo utilizada desde o reinado de Filipe IV, surgindo com frequência em várias obras de autores seiscentistas, designadamente no El Criticón de Baltasar Gracián e nas Empresas Politicas de Saavedra Fajardo(122). Contudo, se analisarmos os dois exemplos referidos por Miguel Moran, verificamos que o primeiro assimila o sol a Deus(123) e o segundo considera o monarca um planeta iluminado por aquela estrela(124), tornando-se evidente, por conseguinte, que em Espanha todos os casos de perfeita identificação do sol com a pessoa do rei são coevos ou posteriores ao reinado de Filipe V(125). Quanto ao menor interesse político desta analogia, achamos que o exaustivo emprego da simbologia solar por parte dos apoiantes do duque de Anjou durante o conflito sucessório, bem como a tentativa de heroicização de Filipe V (o "partido francês", mesmo antes das vitórias militares de Almansa [1707] e Villaviciosa/Brihuega [1710] terem acontecido, já propalava a intrepidez do seu candidato e associava-a à de Alexandre Magno(126)), contradizem Miguel Moran, pois comprovam que os Bourbons hispânicos trouxeram para a Península Ibérica uma nova concepção de propaganda ideológica que atingiu o máximo apuro e eficácia na segunda metade do século XVIII, quando Carlos III, seguindo as pisadas do seu bisavô Luís XIV(127), aproveitou a sacralização e heroização da realeza para lidimar os princípios regalistas postos em execução pelos ministros Campomanes, Aranda e Floridablanca(128).

A atenção dada à situação espanhola justifica-se, a nosso ver, por ser bastante parecida com a portuguesa, possiblitando-nos uma melhor compreensão desta. Não obstante, essa similitude de modo algum indica que tenha havido intensos contactos entre as cortes ibéricas no início do reinado de D. João V, pois o apoio dado por Portugal ao candidato Habsburgo ensombrou durante anos a convivência entre as duas coroas peninsulares(129), só tendo sido superados os ressentimentos quando se negociaram os consórcios dos príncipes das Astúrias e do Brasil, herdeiros presuntivos das coroas peninsulares(130). Antes deste pacto de enorme relevância diplomática - selado várias décadas após o início de ambos os reinados -, a influência política e cultural de Madrid na nossa corte era diminuta, sendo patente que a actuação de D. João V, sobretudo na juventude, foi directamente inspirada por Luís XIV(131), cuja personalidade o nosso soberano admirava(132), embora tivesse sido a magnificência dos sólios pontifício e imperial que mais estimulou o espírito de emulação do Magnânimo.

O fascínio de D. João V por Roma fundava-se em motivações político-religiosas já esclarecidas anteriormente, restando-nos agora mencionar o padrão austríaco, geralmente pouco valorizado na nossa historiografia. O matrimónio do rei português com D. Maria Ana de åustria teve consequências neste e noutros domínios(133), pois esta princesa era filha de Leopoldo I, um governante profundamente cativado pelo modelo versalhesco (recorde-se que o imperador era cunhado de Luís XIV), que procurou imitar em múltiplos aspectos(134), nomeadamente o apolíneo, como nos certifica uma sugestiva gravura datada de 1674, onde o césar romano-germânico aparece a conduzir a quadriga de Hélio pelos céus [ver nota 118] [Fig. 31]. Note-se, aliás, que uma das raras identificações iconográficas do nosso monarca com a simbologia solar, aparece numa gravura inclusa no Minerval austriacum, um opúsculo publicado em Viena destinado a celebrar os esponsais da futura rainha de Portugal [Fig. 32], na ocasião irmã do imperador José I, outro rival de Luís XIV(135).

Anos depois, em 1747, quando a provecta idade de D. João V deveria desaconselhar qualquer conotação da figura do rei com a simbologia solar (vimos como Luís XIV evitou fazê-lo na velhice), esta apropriação ressurge, com idêntica explicitude, no frontispício da chamada "edição vicentina" das Ordenações Filipinas (designação resultante do facto de o mosteiro lisboeta de S. Vicente de Fora possuir o privilégio da impressão). Trata-se, como é óbvio, de um manifesto aproveitamento político do tema, já que, aparecendo no rosto de uma obra de magna importância para a afirmação da monarquia absoluta - a compilação da lei geral do reino -, o seu objectivo primordial é persuadir os súbditos de que o rei, iluminado pelo sol, administra a justiça com suprema sabedoria e equanimidade [Fig. 33]. Esta espécie de analogias perduram ao longo do reinado de D. José, sendo muito utilizadas para assinalar momentos festivos - seja nos cortejos triunfais, nas medalhas comemorativas ou na poética exaltatória com que os poetastros pretendiam insinuar-se junto da corte para obterem favores(136) -, mas permanecem discretas no discurso político, respeitando os limites impostos por uma tradição já perfeitamente estabelecida no último quartel do século XVI(137). Este procedimento mantém-se inalterado na época mariana, sendo constantemente avocada a convicção de que a luminosidade solar, quando exagerada, pode tornar-se nociva em vez de benéfica(138).

Os festejos da inauguração da estátua equestre de D. José I em 1775 deram ensejo a importantes manifestações de júbilo, possibilitando a divulgação de imagens e textos literários destinados a promover a sacralização e heroização da realeza. Os vates de pouco talento atribuíram ao monarca as qualidades intelectuais e físicas dos grandes personagens clássicos(139), os gravadores imaginaram estampas elogiando a acção do rei na reconstrução de uma nova cidade sobre os destroços da antiga (um deles comparou o empenho do rei nessa empresa à tenacidade de Hércules(140)), e até intelectuais de vulto participaram nesse movimento, com destaque para o Padre António Pereira de Figueiredo, um acérrimo defensor do pombalismo, que publicou nessa ocasião um paralelo entre D. José I e o imperador Augusto(141), iniciando assim um género literário que lhe veio a dar um certo prestígio nos meios cortesãos em finais de setecentos(142). O mais interessante é observar o esforço que este oratoriano fez para se adaptar ao novo espírito político e religioso vigente na época mariana, vendo-se obrigado a substituir os arquétipos pagãos - ainda mencionados num texto redigido para celebrar a aclamação de D. Maria I(143) - pelos cristãos, retirados da Sagrada Escritura ou inspirados nas acções e virtudes dos imperadores romanos cristãos da Antiguidade tardia(144).

Na estatuária, pelo contrário, manteve-se até às vésperas do liberalismo o costume de retratar a pessoa real envergando vestes clássicas. O maior escultor português de então, Joaquim Machado de Castro, que na estátua equestre de D. José adornara o soberano com o chamado "trajo romano", explica as razões dessa preferência num dos projectos da sua proposta - apresentada ao marquês de Ponte de Lima - para a execução da estátua de D. Maria I destinada à Biblioteca Pública da Corte, tendo a escolha recaído sobre aquela onde a soberana é figurada como uma heroína clássica e o sol que ilustra e vivifica os seus estados, em detrimento de outra que a identificava com a deusa pagã Minerva e de uma terceira sem ficção alguma; ou seja, vestida ao uso do tempo(145). Decorridos alguns anos, em 1801, Machado de Castro explica as razões porque optou pelo vestido romano na estátua equestre de D. José I, dizendo ser mais nobre e dignificante para a majestade régia a indumentária clássica do que o trajo presente(146), alvitre que é de novo reafirmado no projecto de uma estátua de D. João VI a ser erigida no Rio de Janeiro, solicitado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho e publicado em 1819:

 

Deve-se representar a estátua do nosso Amável Régio Herói, com vestido ao antigo uso romano: por ser este o uso de vestir, o mais Magnífico, mais Augusto, e de maior beleza que se tem visto; e que em tais casos têm sempre adoptado os artistas mais judiciosos e mais instruídos.(147)

Os estímulos dirigidos aos príncipes portugueses para que se revejam nas virtudes e acções dos grandes vultos da Antiguidade bíblica e clássica, aparecem amiúde nos tratados de educação publicados desde o século XVI, como sucede em 1571 no prólogo do Libro primero del espejo del perfecto principe cristiano, onde Francisco de Monzón incita o jovem D. Sebastião a imitar os ilustres e famosos reis antigos(148). No século XVIII, no entanto, estas exortações deixam de ser um assunto puramente ciropédico para se transformarem no tema favorito dos panegiristas que, servindo-se dos mais diversos pretextos, não raro algo artificiais, intentam demonstrar serem os monarcas, pelas suas virtudes e acções, dignos de poderem igualar e, inclusive, superar os heróis e bem-aventurados do passado, em particular os seus santos epónimos. O caso mais paradigmático é o de D. João V, que viu a sua imagem de "rei-herói"(149) frequentemente comparada, não raro em posição de vantagem, com a dos imperadores romanos(150) e personagens bíblicos(151), designadamente, por motivos onomásticos, S. João Baptista(152) e S. João Evangelista(153).

O contacto dos soberanos com estes modelos de heroicidade e santidade não se confinavam aos "espelhos de príncipes" ou à parenética oficial. Se por acaso o Príncipe-Regente D. João leu o poema de Francisco António de Novaes Campos relativo ao trigésimo segundo emblema de D. João de Solórzano(154), interiorizou a ideia de um Alexandre Magno varonil e ambicioso, perfeitamente condizente com a serenidade do rosto e temeridade do gesto dos heróis clássicos exaltados nas alegorias desenhadas pelos artistas e sumptuosamente reproduzidas pelos artífices nas medalhas reais(155) e tapeçarias (vejam-se as valiosas colgaduras sobre a história alexandrina existentes nas salas do Despacho e dos Contadores do Palácio da Ajuda). As referências clássicas e bíblicas eram incontáveis na ornamentação dos palácios reais portugueses, conhecendo nós, a partir de um texto de 1684 sobre a vida de D. Afonso VI - atribuído ao duque de Cadaval (D. Nuno Álvares Pereira) -, que a capela real do Paço da Ribeira "estava toda armada de panos de arrás e ouro, em que se continha a história de Alexandre Magno; e à parte direita estava também uma cama de arrás e ouro, bordada, da história de David..."(156).

Os espectáculos palacianos também proporcionavam a difusão dos ideais greco-latinos, principalmente a ópera, extremamente apreciada na corte josefina e mariana, embora não tanto na joanina(157). Tal como Luís XIV e Leopoldo I, os primeiros soberanos europeus a conhecerem a importância da dramaturgia para a divulgação de uma concepção modelar de realeza(158), D. José I também retirou dividentos políticos dessas representações, conforme perceberam dois estrangeiros que assistiram na Real Ópera do Tejo às óperas Alessandro nell'Indie e La Clemenza di Tito(159). Quem folhear os libretos destas duas obras de Metastásio, verificará sem dificuldade o propósito de exaltar as virtudes e excelências dos reis; o mesmo sucede, aliás, na maioria das óperas e operetas encenadas até finais do século XVIII nos teatros de corte portugueses, sobretudo as representadas durante a celebração dos fastos da família real (nascimentos e aniversários, aclamação dos monarcas, etc.)(160).

A velha nobreza não disputou à coroa a utilização de uma simbologia clássica que considerava serem atributos da preeminência institucional do poder régio. Aos fidalgos bastava colocar nas fachadas das suas residências os antigos brasões e pendurarem nos salões os retratos dos gloriosos antepassados. Os validos e outros recém-nobilitados endinheirados, pelo contrário, não dispondo desses pergaminhos genealógicos, mas apostados em rivalizar com a realeza e fidalguia(161), preferiam idolatrar os heróis da Antiguidade porque encontravam no panteão clássico sobejas provas da superioridade do mérito individual sobre as privilégios hereditários, já que todos os deuses e semi-deuses haviam atingido a glória e alcançado a imortalidade por valor próprio(162). Esta ambição, parece-nos, talvez explique a colocação dos bustos dos doze césares biografados por Suetónio nas colunas adossadas aos arcos da adega existente nos jardins do palácio do marquês de Pombal em Oeiras, ou a megalómana decisão do Intendente Pina Manique de mandar edificar uma nova localidade no seu senhorio ribatejano (Manique do Intendente), fazendo-o de acordo com as regras do urbanismo da Roma imperial (existe um Forum na intersecção do Cardo e do Decumanus) e dando às principais artérias nomes romanos - Praça dos Imperadores, ruas de César, Justiniano, Augusto, Trajano, Sertório... -, tornando a dita povoação num caso sui generis da toponímia urbana portuguesa.

A vulgarização da simbologia grega e romana atenuou-lhe a carga mítica que emprestava uma certa sobrenaturalidade à função régia. Por outro lado, a História iluminista ao perfilhar uma concepção evemerista da deificação e heroização(163), retirou sentido aos argumentos utilizados pela parenética barroca para sacramentar a realeza e o soberano, como lobrigou em 1829 Almeida Garrett no seu tratado ciropédico(164). Contudo, no final do Antigo Regime, em especial numa monarquia detentora de domínios nos quatro continentes [Fig. 34], continuava a ser imperioso deferir ao múnus real uma dignidade sagrada, capaz de infundir respeito e assegurar a fidelidade do universo dos súbditos espalhados pelo mundo. Na verdade, a coesão da monarquia portuguesa, enquanto realidade geográfica pluricontinental, dependia em larga medida da crença no carisma e glória de um monarca distante, tido por divino no exercício do seu mandato(165). Essa necessidade era óbvia e, certamente, imprescindível para um pensador político arguto como o era o marquês de Penalva que, no estertor do absolutismo (1799), ainda teimava em equiparar o poder dos reis ao de Deus(166), utilizando frases de significação idêntica às que, nos alvores da centralização monárquica, Diogo de Teive escrevera nos Épodos (1565): o rei a todos os outros sobrepuja, com o qual aproveitar a muitos pode, se algum tanto arremeda ao divino, a ser Deus trabalha semelhante.(167).

A sacralização da realeza nunca foi, porém, um assunto isento de contestação no Antigo Regime. Em duas interessantes passagens do terceiro acto da tragédia Ricardo II, William Shakespeare começa por nos revelar a desmedida confiança depositada pelo último monarca Plantageneta na força do seu poder sagrado(168), mas depois, num monólogo do entristecido soberano (já vencido pelas armas de Henrique de Bolingbrooke), lembra que as lágrimas de um monarca deposto podem lavar os sacros óleos de um rei ungido(169). Metáforas deste género são muito comuns nesta altura, geralmente escritas por eclesiásticos que não cessam de prevenir os monarcas para a sua condição de mortais, alertando-os, como faz Bossuet, para o facto de só Deus poder decidir da sorte dos impérios, sendo por isso absolutamente transitórias as honrarias humanas(170). Avisos deste jaez surgem-nos, desde o século XV até ao século XVIII, em muitas obras dos mais ilustres pensadores portugueses. O infante D. Pedro, em O livro da Virtuosa Bemfeitoria, estabelece limites precisos à condição divina dos reis, afirmando que a circunstância de eles estarem mais próximos da divindade confere-lhes maiores responsabilidades no quotidiano, mas não lhes adjudica nenhum privilégio(171). No século XVII, Luís Torres de Lima - Avisos do Céu (1653) - reflecte sobre a morte para mostrar aos poderosos como são perecíveis as vaidades do mundo(172) e comparar a humanidade dos reis à dos súbditos(173), enquanto Frei Manuel dos Anjos enaltece, na Política Predicável (1655), a humildade dos príncipes perante a omnipotência divina(174). Cem anos depois, as advertências sobre os riscos da sobrançaria dos reis "semideuses" ressurgem nas Aventuras de Diófanes (1752) de Teresa Orta(175) e, em finais de setecentos, Francisco Novaes Campos evoca esses perigos em vários sonetos do Príncipe Perfeito (1790)(176).

Uma das críticas portuguesas mais curiosas à deificação do poder real encontramo-la, no entanto, num manuscrito seiscentista pertencente ao espólio da Biblioteca Britânica. Trata-se de um texto literário escrito sob a forma epistolar, em que os redactores das missivas são figuras proeminentes da Antiguidade; na terceira e quarta cartas, assinadas por Alexandre Magno (na altura apenas rei da Macedónia), o imperador persa Dário (considerado por muitos adversários do absolutismo como um verdadeiro alter ego dos déspotas coroados) é autenticamente zurzido por se julgar um deus(177). Além disso, o jovem Alexandre critica ao monarca aqueménida a ostentação que ele faz das suas riquezas, dizendo-lhe que isso, em lugar de atemorizar os reis estrangeiros, serve para lhes excitar a cobiça e fortalecer a vontade de um dia se apoderarem delas, opinião contrária à dominante na época, que considerava o aparato régio a prova irrefutável do poderio económico e militar de um reino, factor essencial para dissuadir os inimigos externos e, consequentemente, garantir a paz, conforme afirmava explicitamente Luís XIV(178).

A mortalidade da realeza e o julgamento dos poderosos no final dos tempos, é um tema trivial na arte e cultura europeias desde a Baixa Idade Média. Em muitas cenas do Juízo Final cinzeladas nos dintéis dos portais das catedrais góticas (observem-se os tímpanos centrais das catedrais de Leão e de Paris, embora este último seja uma soberba reconstituição feita por Viollet-le-Duc no século XIX), encontramos reis, papas, cardeais, bispos e cavaleiros entre os condenados. A escatologia cristã, profundamente justiceira e igualitária, não poupa os grandes do mundo; nenhum crente poderá arrogar-se a um tratamento de distinção, todos serão julgados por Deus com idêntico peso e medida. A magnífica e tétrica representação dos restos mortais de um bispo existente no Hospital da Caridade em Sevilha (pintada em 1671 por Juan Valdés Leal e que ostenta a frase latina Finis Gloriae Mundi) [Fig. 35], as telas do século XVIII colocadas nos altares laterais do mosteiro alemão de Banz que exibem os restos mortais de dois imperadores [Fig. 36], ou a pintura quinhentista de Jerónimo Corte Real postada na Capela das Almas da igreja eborense de Santo Antão, onde podemos observar soberanos e altos dignitários eclesiásticos a padecerem nas labaredas do Inferno [Fig. 37], são também testemunhos eloquentes da tradicional meditação católica sobre a futilidade das honras e riquezas mundanas.

As visões apocalípticas, descritas nas obras dos místicos e moralistas, dirigem-se a todos os fiéis e procuram convencê-los a adoptarem uma conduta virtuosa, recordando-lhes a sua natureza mortal; nos publicistas políticos, em particular nos ciropedistas, as descrições das delícias celestes e dos tormentos infernais embora visem, formalmente, o mesmo intento, acabam por extravasar o plano pessoal e terem manifestas repercussões ao nível da acção governativa(179). Ao encerrar as Empresas Politicas com um poema à morte dos reis(180), Saavedra Fajardo não parece sumamente interessado em lembrar a Filipe IV uma irrecusável evidência de carácter biológico, mas sim preocupado em mostrar-lhe a impreterível necessidade de ele, como bom príncipe cristão, estar ciente da uma humanidade que lhe exige escrúpulos e impõe limitações no exercício do poder. É também esse o intuito de Bossuet quando na quarta proposição da Politique tirée des propres paroles de l'Écriture Sainte cita o rei bíblico Salomão para recordar ao Grande Delfim a sua irrefragável condição humana(181). Fénelon, acicatado pelos seus ideais quietistas, vai mais longe e ensina ao duque da Borgonha nas Aventuras de Telámaco, através de um elucidativo diálogo entre o príncipe grego e o defunto rei babilónico Nabopharsan, como são pesados os castigos inflígidos na vida eterna aos monarcas soberbos(182); noutro passo do livro, o arcebispo de Cambrai compraz-se - inspirado na Eneida de Virgílio (Canto VI, 548-627) - a descrever as penas eternas reservadas aos maus reis no Tártaro(183), confrontando-as com as inexauríveis doçuras usufruídas pelos soberanos virtuosos nos paradisíacos Campos Elíseos(184). Era por causa destas ideias que Luís XIV - um autêntico Nabopharsan - antipatizava com o mestre do seu neto, apesar de ele próprio, no seu íntimo, nunca ter deixado de recear o julgamento divino, um temor confessado em pleno transe da morte quando recomenda ao futuro Luís XV para evitar imitá-lo(185).

Estas concepções "fenelonianas" sobre as recompensas reservadas por Deus aos reis virtuosos insinuam-se das mais diversas formas no quotidiano da corte portuguesa do século XVIII. Numa gravura emoldurada existente no Palácio de Queluz, podemos observar uma Apoteose de D. Maria I (dedicada a D. João VI pelo gravador Pallière), onde aparece a finada rainha glorificada no céu, acompanhada das virtudes e rodeada pelas grandes realizações do seu reinado (um anjo segura a Basílica da Estrela), enquanto na terra, Portugal e Brasil lamentam a morte da ditosa soberana junto ao túmulo de D. João I, que talvez apareça aqui como símbolo maior das sepulturas reais portuguesas [Fig. 38]. Em Portugal, a glorificação "post-mortem" dos monarcas confere-lhes um estatuto singular (mesmo Fénelon, sempre crítico em relação aos exageros da monarquia francesa nesta matéria, reconhecia a existência de um tratamento especial dado aos monarcas na vida eterna, diferente do reservado ao comum dos mortais(186)), mas, ao invés do que sucede em França desde meados do séc. XVI(187), nunca se chega a pôr em dúvida o princípio inconcusso da mortalidade do rei (já glosado pela generalidade dos nossos escritores quinhentistas, desde Gil Vicente na Barca da Glória(188) a Frei Amador Arrais nos Diálogos(189)), embora por vezes os panegiristas dos reis insinuem, ainda que de forma esparsa e cautelosa, a imortalidade da realeza(190).

A necessidade de os monarcas se reconhecerem a sí próprios como simples seres humanos, sujeitos às vicissitudes da vida e à incerteza da morte, é ponto assente para a generalidade dos nossos escritores barrocos. É bom que os príncipes reflictam sobre a morte, escreve em 1655 Frei Manuel dos Anjos na Política Predicável, para compreenderem quão perigosa é nas púrpuras a presunção de imortais com lisonja de eternas(191) e, assim, poderem adoptar um comportamento virtuoso, o único adequado para quem está consciente da sua mortalidade(192). Quase cem anos depois, o genealogista D. António Caetano de Sousa, no capítulo sobre o reinado de D. Sebastião, relembra o desastre de Alcácer-Quibir no intuito de mostrar que a majestade dos príncipes está sujeita às vicissitudes da Fortuna(193), enquanto Francisco Xavier da Silva e Frei Pedro de Molina, em meados de setecentos (1750 e 1754, respectivamente), admitem nas suas orações fúnebres recitadas em memória de D. João V, que um monarca absoluto também é mortal, independentemente da sublimidade do seu carácter(194) ou do facto de parecer quase um deus na terra(195). Na realidade, para utilizar a sugestiva expressão empregue em 1801 por Frei Cláudio da Conceição na oração consolatória ao falecimento de D. António (filho primogénito de D. João VI), os principes são iguais ao comum dos homens; isto é, formados do mesmo quebradiço barro(196).

O rei de França nunca morre, terá dito um dia o chaceler Brulart de Sillery à rainha Maria de Médicis ao tomar conhecimento do assassinato de Henrique IV em 1610(197). Em Portugal esta afirmação suscitaria o maior cepticismo, seria mesmo motivo de irrisão, dado que os monarcas portugueses morriam de facto, não apenas como homens, mas também enquanto titulares do poder supremo. O horror francês ao vazio político resultante da morte do soberano, sublimado em tempos mais recuados pela presença da efígie do monarca falecido no protocolo fúnebre e, depois, pela teatralização do grito O rei é morto! viva o rei (costume que, embora já sem grande significado político, renasce na restauração bourbónica e ainda marca o climax das exéquias de Luís XVIII em 1824)(198), contrasta com a assunção pública da morte do rei de Portugal na tradicional cerimónia da "quebra dos escudos", repetida em público até exaustão em inúmeras localidades da metrópole e colónias, conforme revela Samuel Pepys em 1677 na sua descrição da corte portuguesa(199). Este ritual, que permanece inalterado desde o século XVII até ao final do Antigo Regime, segundo podemos depreender das descrições coevas(200) - e ainda é efectuado sem alterações de monta no funeral de D. Pedro V [Fig. 39] -, representava sem dúvida a "morte" da realeza, conforme podemos ler no soneto do segundo emblema do Príncipe Perfeito (1790)(201).

Morto o soberano, diversa era a atitude do seu sucessor em Portugal e em França. O rei fidelíssimo tomava luto carregado e recusava aparecer em público(202); o monarca cristianíssimo, pelo contrário, vestia-se de vermelho(203) e comparecia de imediato no Parlamento de Paris para presidir ao seu primeiro Lit de Justice(204).

 

2. A heroização/santificação da monarquia portuguesa: "O rosto do Príncipe [D. Afonso Henriques na manhã da batalha de Ourique], animado com o auxílio divino resplandecia como Sol". [In Damião António de Lemos Faria e Castro, Política moral e civil, aula à nobreza lusitana (1754), Tomo 6º.]

No discurso proferido em 1656 por D. António de Sousa de Macedo no juramento de D. Afonso VI, o jurisconsulto e famoso escritor defendeu, provavelmente com escasso sucesso - dada a notória inacapacidade física e intelectual do novo monarca -, possuir O Vitorioso a soma das virtudes particulares de todos os anteriores reis portugueses, um dom divino que o tornava, em simultâneo, possuidor de um espírito piedoso, providente, benigno, prudente e magnânimo, além de outros variados atributos(205). Esta prática encomiástica tornou-se bastante comum a partir de setecentos, tendo sido publicados alguns panegíricos que se destinavam a demonstrar haver D. João V reunido em si todos os talentos dos seus antepassados, chegando mesmo a ultrapassá-los no seu exercício(206). Estes exageros da retórica barroca, frequentes até aos finais do século XVIII, levaram José Mazza (músico instrumentista da câmara real) a considerar em 1789 o Príncipe do Brasil D. João (nas vésperas de este assumir a regência do reino) um verdadeiro modelo do perfeito monarca D. João II(207), uma comparação cujo cabimento apenas se pode basear na circunstância acidental de possuírem o mesmo nome. A homonimia, no entanto, era muitas vezes a única razão plausível para o estabelecimento deste género de paralelos, como podemos observar nos panegíricos dirigidos ao Magnânimo em 1748 por Filipe José da Gama e 1749 pelo padre Manuel Monteiro(208). O valor documental destes textos laudatórios não reside no crédito a atribuir a analogias destituídas de qualquer verosimilhança histórica, mas sim na imagem da realeza ideal que veiculam. Na verdade, eles apresentam-nos o protótipo do bom rei cristão como uma espécie de sinopse de valores morais e qualidades de governo(209), testificados em diversos actos de administração ou decisões políticas. No elogio fúnebre de D. João V de Francisco Xavier da Silva, por exemplo, exalta-se a "generosidade das mercês" de D. Fernando, a estima aos homens doutos de D. Duarte, a sumptuosidade dos templos no tempo de D. Manuel ou a piedade para as coisas sagradas, e aumento da Fé de D. João III, apenas como pretextos para encarecer a liberalidade, mecenatismo, magnanimidade e piedade do monarca defunto(210).

Nenhum soberano da história portuguesa é preterido nesta construção da imagem épica da realeza absoluta. A omissão dos sucessos menos felizes do seus reinados constitui, aliás, uma postura bem expressiva em termos ideologicos; o modo como se altera o significado político dos acontecimentos que levaram às deposições de Sancho II e Afonso VI, a transformação dos desvarios bélicos de D. Sebastião em suprema manifestação de proselitismo cristão, ou a excessiva tolerância em relação ao zelo justiceiro de D. Pedro I, confirmam a intenção de remover tudo o que pudesse obscurecer o resplendor da coroa. Contudo, embora na árvore genealógica da casa real portuguesa existissem muitos monarcas a quem se poderiam atribuir façanhas heróicas, nenhum deles morrera com halo de santidade, como sucedera com os monarcas medievais francês e castelhano Luís IX e Fernando III, "O Santo". Existia somente a tradição de que o fundador da monarquia avistara Cristo pregado na cruz na véspera da batalha de Ourique, mas esta baseava-se em documentos apócrifos e testemunhos tardios - em relação à ocorrência do evento, entenda-se(211) -, que nunca iludiram os canonistas encarregues de examinar o processo de santificação de D. Afonso Henriques. Seria pura ingenuidade da nossa parte aceitar a explicação de que a morte de D. João III foi a principal causa da interrupção da primeira tentativa de canonização do primeiro rei de Portugal(212), porque não vislumbramos nenhum motivo para que a iniciativa não tivesse prosseguido na regência de D. Catarina, no reinado do devoto D. Sebastião ou, ainda com mais justificação, ganhar novo alento no de D. Henrique, beneficiando do prestígio adquirido pelo cardeal-rei no desempenho das funções de inquisidor-geral. Na verdade, como viriam a confirmar mais tarde as novas diligências feitas nos reinados de D. João IV, D. João V e D. José I, todas elas apoiadas no processo instruído em 1556, as provas e alegações coligidas no século XVI nunca mereceram muito crédito aos exigentes examinadores da Congregação dos Ritos(213). Poucas tentativas consequentes de canonização de príncipes católicos, segundo creio, se confrontaram com tantos obstáculos e obtiveram tão pouco sucesso como esta, não deixando de ser bem eloquente a atitude de Clemente X de obsequiar em 1671 a regência espanhola de Mariana de Áustria com a canonização de Fernando III de Castela, continuando a manter em suspenso o pedido D. João IV de elevar aos altares D. Afonso Henriques.

Os investigadores contemporâneos do Milagre de Ourique negligenciaram esta vertente da questão, embora ela não nos pareça despicienda, uma vez que a decisão de beatificar ou santificar alguém cabe por inteiro ao papado(214). O governo de D. João V, pelo contrário, ciente desta situação, procurou reforçar o pedido de canonização de D. Afonso Henriques com uma vasta operação de propaganda junto da cúria romana, tendo-se empenhado numa campanha de publicitação em Itália da vida prodigiosa do primeiro rei português, razão por que hoje se guardam na Biblioteca do Vaticano vários manuscritos e impressos redigidos por estrangeiros contendo alusões ao Milagre de Ourique. Um dos mais importantes é o livro do jesuíta Anton Maria Bonucci, dado ao prelo em Veneza no ano de 1719, onde se narra a miraculosa cura do jovem príncipe obtida perante uma imagem da Virgem(215), além de fundamentar os motivos que constrangeram o santo rei a declarar guerra à mãe para defender a herança paterna(216). Bonnuci prossegue dando grande relevo ao zelo religioso de D. Afonso Henriques(217), para depois descrever com extrema minúcia a já bem conhecida promessa feita por Cristo ao primeiro soberano português(218). O mais interessante, porém, e que denuncia a nosso ver o interesse político da coroa portuguesa na publicação deste género de relatos, é a forma como o autor se serve das profecias do Salvador para elogiar todos os monarcas brigantinos, com excepção de D. Afonso VI, apenas discretamente mencionado(219).

Os depoimentos e provas coligidos em 1632 por Frei António Brandão na Monarquia Lusitana e em 1668 por Frei Nicolau de Santa Maria na Crónica da Ordem dos Cónegos Regrantes do Patriarca S. Agostinho, poderiam chegar para considerar D. Afonso Henriques um varão admirável consumado em todo o género de virtudes, um miraculado ou bem-aventurado(220), mas não atestavam a santidade do rei. A exumação do seu corpo incorrupto(221), os milagres obrados pelas suas relíquias em enfermos e parturientes(222), ou as estranhas pancadas ouvidas na sua tumba para alentar os devaneios messiânicos dos sebastianistas(223), eram acontecimentos demasiado corriqueiros numa era habituada a "conviver" em estreito contacto com o sobrenatural e, por isso, importantes mas não decisivos para o êxito de um processo de canonização(224).

Acresce, igualmente, que na primeira metade do século XVII os encómios dirigidos à imagem histórica de D. Afonso Henriques eram vistos com preocupação pelo governo de Madrid(225). A difusão de novos milagres obtidos por intercessão daquele monarca acicatavam o "irredentismo" português, cujo cariz messiânico robustecia o patriotismo das gentes humildes(226) e inflamava a retórica sebastianista(227). Mesmo num contexto oficial, a sublimação do fundador da nacionalidade assumia contornos de resistência passiva ao centralismo madrileno, conforme se constatou na visita efectuada por Filipe III a Lisboa, uma ocasião em que as autoridades portuguesas(228), ansiosas por obter do novo monarca a confirmação dos privilégios e mercês estatuídos nas cortes de 1581(229), permitiram a erecção de monumentos efémeros ao longo do itinerário régio com temáticas imbuídas de um espírito autonomista, plenamente assumido no Arco dos Ourives e Lapidadores(230) e sugerido na representação do Milagre de Ourique patente no Arco dos Oficiais da Bandeira de S. Jorge(231) [Figs. 40 e 41]. Venerados como símbolos da independência nacional, D. Afonso Henriques e a aparição de Cristo em Ourique passaram a ser objecto das acerbas críticas dos defensores das teses "castelhanistas" que, nas vésperas da revolta de 1640, viam em O Conquistador um vassalo que se rebelara contra a legítima suserania do rei leonês(232).

Após a Restauração, as promessas feitas por Cristo a D. Afonso Henriques serviram de imediato para demonstrar, de acordo com a concepção providencialista da História então em voga, que a casa ducal de Bragança estava predestinada a recuperar a independência de Portugal. Assim, num texto manuscrito de Pedro Soares Saraiva (datado de 15 de Outubro de 1644), enumeram-se de forma um tanto atabalhoada várias profecias, pagãs e bíblicas, para comprovar a veracidade do Milagre de Ourique, recorrendo-se também aos textos patrísticos - interpretados de uma forma assaz heterodoxa - para conferir à santidade de D. Afonso Henriques alguma plausibilidade canónica e abonar a identificação de D. João IV com o "Encoberto" das predições sebastianistas(233). Nesta conformidade, a santificação do primeiro rei português tornou-se um dos grandes factores de dissídio nas difíceis relações entre as duas embaixadas ibéricas acreditadas em Roma; do lado espanhol considerava-se a santificação de D. Afonso Henriques uma afronta à Casa de Áustria, e da parte portuguesa - veja-se o opúsculo À santidade do monarca eclesiástico Inocencio X. Expõem Portugal as causas do seu sentimento, e das suas esperanças, atribuído a João Pinto Ribeiro(234) - buscava-se uma decisão nesse sentido porque ela constituiria uma preciosa prova do inequívoco apoio pontifício ao ressurgimento da independência portuguesa e o tácito reconhecimento da legitimidade do novo soberano. Entre estas duas facções, ao que parece incapazes de estabelecerem entre sí regras mínimas de convivência(235), manobrava com dificuldade a prudente diplomacia vaticana, decerto pouco disposta a provocar a ira do poderoso Filipe IV para corresponder ao pedido de D. João IV, cujo influência política e força militar ainda se mostravam algo débeis.

No século XVIII as cogitações políticas e conveniências diplomáticas que haviam entravado na centúria precedente o processo de santificação de D. Afonso Henriques já não faziam qualquer sentido. A independência de Portugal era reconhecida por toda a Cristandade e os direitos dinásticos do nosso soberano também. Além disso, durante o pontificado de Clemente XI vivia-se uma situação de intenso fervor cruzado provocado pela ameaça militar turca nos Balcãs(236), uma conjuntura que favoreceu a santificação do papa Pio V (1566-1572)(237) mas não facilitou a de D. Afonso Henriques (sem dúvida um modelo de intrépido guerreiro da reconquista cristã), ou sequer conferiu uma renovada importância ao Milagre de Ourique, uma intervenção divina contra os inimigos da verdadeira Fé, pela qual os exércitos imperiais se batiam com denodo nos campos de batalha do norte da Sérvia(238). O momento era, assim parece, propício à canonização do primeiro rei de Portugal, e o governo joanino, generoso financiador do fausto pontíficio, não poupou esforços para conquistar essa distinção para a monarquia portuguesa, premiando todos os intelectuais que se dispusessem a carrear novos argumentos e descobrir mais "testemunhos" incontroversos da veracidade do Milagre de Ourique(239), uma estratégia político-cultural e um imenso esforço diplomático que tiveram exíguos resultados na prática. Na realidade, apenas indíviduos ligados à administração pública ou académicos dependentes do mecenatismo régio escreveram opúsculos a confirmar a autenticidade histórica do Milagre de Ourique, todos eles interessados em retirar vantagens de ordem política e pouco preocupados em confirmar factos históricos ou reforçar a argumentação canónica, como se constata na oração proferida em 1742 pelo académico Filipe José da Gama na Academia dos Escolhidos ou na Relação verdadeira da aparição Cristo Nosso Senhor no Campo de Ourique (1753) escrita pelo familiar do Santo Ofício Dionísio Teixeira de Aguiar, opúsculos que parafraseiam as descrições seiscentistas do Milagre de Ourique com o único desejo de sublinhar a auspiciosa fundação da monarquia portuguesa, a origem divina do poder real (a omissão da aclamação popular de D. Afonso Henriques após a batalha de Ourique, sempre recordada nos textos seiscentistas, é neste contexto deveras significativa), a supremacia dos esclarecidos reis e, finalmente, a protecção dispensada por Deus ao reino de Portugal(240).

Os escassos êxitos obtidos após esta pertinaz porfia diplomática, não podem ser escamoteados. Só em 1753 o Vaticano, já depois de D. João V ter falecido, aceitou incluir um "discreto" aditamento sobre o Milagre de Ourique ao ofício das Cinco Chagas (aprovado vinte anos antes pelo papa Bento XIV a pedido do patriarca de Lisboa D. Tomás de Almeida)(241), mas o mais desanimador para os prosélitos da veracidade do milagre e defensores da santidade de D. Afonso Henriques foi, sem dúvida, o geral cepticismo dos estudiosos nacionais e estrangeiros, que permaneceu inabalável até ao colapso da monarquia absoluta. A Enciclopèdie des Arts et Métiers (1751), na secção dedicada à heráldica, passa em claro o Milagre de Ourique na descrição que faz das armas do rei de Portugal(242) e os autores de uma história de Portugal em inglês, publicada nos finais de setecentos, qualificam-no de relação fabulosa(243); o iluminista Verney, por seu turno, fiel aos princípios racionalistas, refuta implicitamente o Milagre de Ourique ao pôr em causa o valor histórico do juramento de D. Afonso Henriques(244), enquanto Almeida Garrett, cujo romantismo poderia ter sido mais sensível ao maravilhoso de uma lenda medieval, o suprime do programa de História de Portugal aconselhado no plano de estudos destinado à educação da jovem rainha D. Maria II(245). Os próprios apologistas setecentistas do Milagre de Ourique tinham plena consciência do excesso que cometiam ao qualificarem D. Afonso Henriques de santo, sentindo-se muitas vezes obrigados a justificar a sua ousadia, conforme podemos observar na protestação do autor inclusa na mencionada relação da aparição escrita por Dionísio Teixeira de Aguiar, onde este familiar do Santo Ofício - e sabemos bem como os inquisidores desconfiavam de semelhantes heterodoxias, portadoras de providencialismos suspeitos de heresia(246) - diz não ser sua intenção exceder os decretos da Santa Sé Apostólica, nem atribuir maior veneração e santidade ao fundador da monarquia portuguesa do que a que pode caber nos limites de uma história humana, esclarecendo depois que pretende unicamente continuar uma antiga tradição respeitada por André de Resende, Frei Bernardo de Brito e tantos outros escritores de reputada sapiência e indesmentível catolicidade(247).

Os exageros messiânicos conotados com o Milagre de Ourique persistiram ao longo do reinado de D. João V, alimentando a crença sebstianista na próxima vinda do Quinto Império, embora as promessas redentoras nele contidas, anunciadoras de um futuro promissor para toda a humanidade, suscitassem a verrina dos poetas que punham a circular folhas volantes contendo rimas sarcásticas dirigidas às vãs esperanças dos chamados "encobertos", sucessivamente anunciadas, jamais cumpridas e eternamente adiadas(248). Ainda assim, em 1732, no prólogo da Ennoea ou aplicação do entendimento sobre a pedra filosofal, uma obra composta com pretensões científicas e não só literárias (inspirada no Mundo Subterrâneo do jesuíta e matemático alemão Athanasius Kircher e no Teatro Crítico Universal do polígrafo beneditino espanhol Feijoo), o alquimista Anselmo Caetano analisa em pormenor as palavras ditas por Cristo a D. Afonso Henriques, pretendendo demonstrar que o Quinto Império, na sua dimensão temporal, pertence aos monarcas portugueses em geral e particularmente a D. João V (249), socorrendo-se para o efeito de exemplos da Sagrada Escritura, da onomástica e da numerologia(250). Esta teleologia sebastianista, recheada de profetismos e visões escatológicas, assente no pressuposto de um devir histórico português predestinado pela providência divina, merecia, no entanto, objecções várias a alguns dos mais conceituados intelectuais da época joanina, entre eles D. António Caetano de Sousa, o emérito historiador e genealogista que acusava os sebastianistas de delírio de imaginação(251). É verdade que este académico, um dos mais ilustres fundadores da Academia Real da História Portuguesa, reproduz no Hagiológio lusitano (1744) as versões seiscentistas do Milagre de Ourique(252), mas, na História genealógica da casa real portuguesa, escrita entre 1735 e 1748, limita-se a apresentar D. Afonso Henriques como um bravo cristão de grande coração e incomparável valor e a ver no episódio do aparição de Cristo uma mera confirmação da perpetuidade da monarquia portuguesa - atestada nas felizes vitórias obtidas pelo monarca fundador -, concluindo, depois, com visível cautela, ser natural que a transcendência do acontecimento tenha favorecido a comum aceitação da santidade de D. Afonso Henriques(253). Contudo, numa passagem inserta noutro tomo da aludida obra genealógica, onde lembra o carinho de D. Sebastião pela ermida arruínada existente no local do Milagre de Ourique, D. António Caetano de Sousa deixa transparecer a opinião de que a intervenção divina em 1139 foi um auxílio pontual prestado por Deus às suas armas num momento crítico, não constituindo por si só uma prova inequívoca da santidade do rei português(254), pois desde os primórdios da civilização, na óptica dos pensadores cristãos, sempre o Omnipotente protegeu os crentes das ameaças dos infiéis(255).

A aversão do pombalismo ao discurso profético e ocultista do Quinto Império, magistralmente explanada no famoso edital da Real Mesa Censória (datado de 9 de Dezembro de 1774) que ordena a queima dos livros do sebastianista seiscentista Manuel Bocarro Francês(256) (apesar de evitar qualquer referência ao Milagre de Ourique e à canonização de D. Afonso Henriques, objectivo também perseguido pelo governo josefino), acabou por enfraquecer inevitavelmente a concepção sacral da fundação do reino português e a alegada santidade de O Conquistador, vindo a reforçar a ideia de ele ter sido um simples cruzado recompensado pelo seu fervor religioso e intrepidez guerreira. É precisamente essa imagem de rei batalhador, coroado com os louros da vitória e não pela auréola da santidade, que observamos no esboço da pintura executada por Vieira Lusitano em 1750 para o tecto da Igreja dos Mártires(257), ou na descrição do Milagre de Ourique feita por Damião de Castro na Política moral e civil, um manual escolar para uso dos jovens fidalgos matriculados no Colégio dos Nobres; ou seja, destinado à formação política, literária e histórica da nova elite política da nação(258). A Dedução Cronológica e Analítica de José Seabra da Silva evidencia, aliás, o firme propósito pombalista de separar o Milagre de Ourique do profetismo sebastianista, retirando-lhe a natureza milenarista e conferindo-lhe um cunho mais político, uma intenção que não era inovadora, pois já anteriormente muitos autores haviam considerado o Milagre uma atestação da singularismo de Portugal no concerto das nações cristãs, enaltecendo também a supremacia da monarquia portuguesa sobre as suas congéneres no domínio temporal(259). Este novo discurso histórico-canónico perdeu o carácter delirante e enigmático próprio das visões apocalípticas e místicas, mas conservou ainda alguma grandiloquência, desajustada da pouca relevância política, económica, cultural e militar de Portugal no contexto europeu(260). É precisamente essa prosápia que leva o oratoriano António Pereira de Figueiredo a convencer-se no trágico ano de 1809 (numa ocasião em que a integridade nacional soçobrava perante a investida das armas napoleónicas), da invencibilidade de Portugal, embora ele estivesse ciente dos parcos recursos da monarquia portuguesa para se defender do poderoso Império Francês(261).

Expulso Massena, reconquistada a liberdade da pátria, o Milagre de Ourique perdeu boa parte do seu pendor nacionalista (usado para estímular a resistência popular), readquirindo a feição de símbolo legitimador do absolutismo régio e da catolicidade estreme dos reis de Portugal. D. Afonso Henriques tornou-se de novo um modelo de religiosidade - tal como fora descrito em 1794 na dedicatória dirigida ao Princípe Regente impressa na Bíblia traduzida pelo Padre António Pereira de Figueiredo(262), e fora representado, por volta dessa data, numa série de desenhos da autoria de José Gualdino de Matos(263) -, servindo-se a propaganda miguelista dessa imagem piedosa do primeiro rei de Portugal para alicerçar o seu poder e imprecar o ateísmo maçónico(264).

Os contínuos esforços desenvolvidos durante todo o século XVIII com vista à canonização de D. Afonso Henriques visavam, já o afirmámos, a sacralização da realeza portuguesa. Por esse motivo, para além de se promover a santificação do fundador da monarquia, pretendia-se, igualmente, ver nele o ilustre antepassado de uma prole de príncipes constantes na fé e heróicos no exercício das virtudes(265); ou seja, todos os descendentes de D. Afonso Henriques participavam, uns mais outros menos, da beatitude do seu ilustre avoengo(266) (D. Maria I, por exemplo, cuja piedade foi celebrada por muitos pregadores, foi considerada possuidora das mesmas excelsas qualidades que tinham permitido a canonização de várias princesas suas antepassadas(267)). O escopo de exaltar as figuras reais portuguesas adoradas nos altares, intensificou-se nos últimos anos do reinado de D. Pedro II com a trasladação dos restos mortais da rainha Santa Isabel para o magnífico esquife do altar-mor do mosteiro coimbrão de Santa Clara-a-Nova (1697), vindo a obter notória importância após a elevação ao trono de D. João V, altura em que se procedeu à transferência, com todo o aparato civil e religioso(268), do corpo de Santa Joana para o deslumbrante túmulo do coro baixo do Convento de Jesus em Aveiro (a cerimónia teve lugar em 25 de Outubro de 1711, mas foi D. Pedro II quem decidiu erigir o mausoléu) e à deposição dos corpos das santas princesas Mafalda, Teresa e Sancha, nos riquíssimos sarcófagos barrocos existentes nos mosteiros de Arouca e do Lorvão (1715). Estas cerimónias tiveram repercussão nacional e foram minuciosamente descritas em numerosas publicações(269), proporcionando de igual modo o aparecimento de biografias apologéticas, algumas delas atribuindo a santidade das infantas Teresa, Sancha e Mafalda, filhas de D. Sancho I, à benévola influência do seu avô D. Afonso Henriques(270). De um modo geral, estas obras exortavam os príncipes a reverem-se nestas "heroínas" de Portugal, autênticos modelos de perfeição cristã(271), chegando os autores, mesmo os mais probos, a ocultar zelosamente qualquer facto histórico susceptível de lhes manchar a honra(272). Do mesmo passo, todos os biógrafos e genealogistas se serviram do estreito parentesco entre as princesas santas e os monarcas portugueses para atribuírem a estes últimos idênticas virtudes, tendo sempre o cuidado de desculpar, ou omitir, os dissídios e mútuos gravames que porventura tivessem ocorrido entre ambas as partes(273).

O empenho do poder real no século XVIII em se associar às virtudes e milagras das rainhas santas surge de modo quase ostensivo na iconografia. À semelhança do que sucedeu um pouco por toda a Europa barroca, onde se ergueram estátuas em honra dos reis e rainhas medievais canonizados(274), também em Portugal houve nesta altura um grande interesse dos artistas em representarem as princesas santas de Portugal, pondo sempre em relevo as insígnias reais(275). Chegou-se ao ponto, inclusive, de atribuir aos próprios soberanos a iniciativa de favorecerem a opção religiosa das suas filhas, irmãs ou esposas, em certos casos contornando a verdade histórica, como sucede na curiosa série de pinturas do segundo quartel de setecentos existentes no museu de Aveiro sobre a vida da princesa Santa Joana(276). Aliás, o objectivo mais político do que religioso destes quadros é insofismável, e está patente na manifesta intenção do pintor em associar o "presente político" ao "passado histórico", retratando acontecimentos ocorridos no século XV como se tivessem acontecido no seu tempo(277).

O propósito dos nossos monarcas absolutos em se identificarem com os seus antepassados venerados pelos católicos, aparece com toda a evidência no templo romano de Santo António dos Portugueses, restaurado e adornado por D. João V com preciosos quadros e alfaias sacras, o que mostra a determinação do monarca de prestigiar a coroa portuguesa na Roma pontifícia (a Capital do Mundo, conforme ainda a considerava em 1835 o exilado miguelista Gama e Castro(278)). Assim, no altar-mor da igreja observam-se duas telas das beatas Sancha e Mafalda e, na nave, três outras, representando a rainha Santa Isabel promovendo a concórdia entre o marido e o filho (atribuído aos artistas José Cades e Luís Agrícola), a princesa Santa Joana e a Imaculada Conceição (do pintor Jácome Zoboli), padroeira da monarquia portuguesa desde 1646.

Parece-nos útil realçar, ao terminar este assunto, que a presença destas invocações e a ausência de qualquer elemento decorativo relativo ao Milagre de Ourique confirmam, em nossa opinião, o teor geral deste sub-capítulo.