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Sua Majestade Fidelíssima

SMF - PARTE I - Capítulo 2

CAPÍTULO II

 

ESCORÇO HISTÓRICO SOBRE AS VANTAGENS DO REGIME MONÁRQUICO (SÉC VI A.C.- SÉC. XVI)

 

1. A herança clássica: "Quer haja vários [reis], quer um só, não abalarão as leis importantes da cidade" [Platão, A República, Livro IV, nº 445. e.]

A monarquia, já o dissemos, não teve grande aceitação na época clássica. Os filósofos gregos dos séculos V ao III a.C. não a preferiam à democracia e os romanos do séc. I a.C., confundindo-a com tirania, menosprezaram-na(1). É evidente que desde o início século VIII a.C até ao limiar da Alta Idade Média, o conceito de governo monárquico evoluiu, tendo sido preferido, tolerado ou rejeitado pelos pensadores políticos por diferentes motivos. Entre a realeza homérica e a concepção latina do princeps, passando pela monarquia helenística [Ver Anexo 4-A], existem diferenças de monta que convém aqui analisar, dada a importância que as teorizações greco-latinas sobre a realeza vieram a ter no pensamento político europeu do Antigo Regime.

O rei na monarquia homérica estava longe de ser absoluto. Na Odisseia, Alcínoo, rei dos Feaces, encontra a sua filha Nausícaa quando se dirigia ao conselho convocado pelo nobres(2), testemunho eloquente de que no século VIII a.C. os monarcas aqueus consultavam o conselho formado pelos gerontes, a assembleia dos "chefes-de-família" e, em situações excepcionais (sempre que tomavam decisões importantes, em especial as relativas à declaração da guerra ou celebraçãao da paz), o universo dos cidadãos em armas(3). Desempenhava, é certo, as funções de Sumo Sacerdote (numa primeira fase identificando-se com o deus da cidade, de quem descendia; mais tarde com Zeus, deus da realeza), administrava a justiça, comandava o exército e lançava os impostos. Mesmo assim, o seu poder estava muito limitado pelos notáveis, por quem era eleito. Com efeito, embora assistamos nesta época à progressiva afirmação da hereditariedade do poder real, que proporcionou um reforço da centralização política na pessoa do monarca, não podemos deixar de considerar que a monarquia homérica, por ser electiva, manteve sempre um pendor senhorial(4).

Só assim se compreende, aliás, que a partir do século VIII a.C. assistamos à substituição da monarquia homérica por regimes aristocráticos que, nos finais da centúria seguinte, viriam a soçobrar perante a crise social, possibilitando o estabelecimento de tiranias plebiscitadas pelo povo. É neste contexto que Heródoto expõe no Livro III de Histórias (séc. V a.C.), as vantagens e defeitos das diferentes formas de governo, num debate havido entre três nobres persas (Otanés, Megabizo e Dario), onde o historiador de Halicarnasso expressa a sua preferência pela monarquia em detrimento da oligarquia e democracia(5):

 

Em terceiro lugar, Dario expôs o seu parecer, dizendo: A mim parece-me que o que disse Megabizo sobre o governo do povo foi correctamente afirmado, mas o que disse em relação à oligarquia não está certo. Sendo três os regimes de que dispomos, e todos em teoria os melhores, o do povo o melhor, bem como o da oligarquia e o do monarca, declaro que este último se lhes avantaja consideravelmente. Quando um homem é o melhor, nada se vê que lhe seja superior. Servindo-se de um entendimento dessa qualidade, governará o povo de modo irrepreensível, e é assim que mais se guardam em segredo as decisões contra o inimigo. Na oligarquia, como há muitos que exercitam o seu mérito para o bem comum, costumam formar-se potentes ódios pessoais, pois como cada um deles pretende estar à cabeça e fazer prevalecer a sua opinião, chegam a grandes inimizades recíprocas, das quais nascem discórdias, das discórdias os crimes, e do crime vai-se desembocar na monarquia. E neste facto se comprova a superioridade dela. Pelo contrário, quando é o povo que governa, é impossível que não apareça a maldade; aparecendo, portanto, a maldade no Estado, não são inimizades que se originam entre as pessoas, mas potentes amizades, porquanto aqueles que prejudicam o Estado fazem-no concretamente. Assim sucede, até que alguém se põe à frente do povo e põe termo aos seus actos. Por tal motivo, esse homem é admirado pelo povo e, uma vez admirado, é apresentado como monarca. E também nisto se demonstra que a monarquia é o melhor. Para resumir tudo numa palavra, de onde nos veio a liberdade e quem no-la concedeu? Foi do povo ou da oligarquia ou de um monarca? Portanto, sou da opinião que, se formos libertados por um só homem, vamos manter um governo desses e que, além disso, não vamos abolir as leis dos nossos antepassados, quando são bem ordenadas; não seria melhor. (6)

Heródoto afirma implicitamente neste discurso do principe Dario, futuro monarca do imenso e poderoso império dos Aqueménidas, que a supremacia da monarquia em relação aos demais regimes reside na eficácia que lhe confere a indivisibilidade e inalienabilidade do poder na pessoa do monarca. Essa opinião não era partilhada pela maioria dos seus contemporâneos gregos, em particular pelos atenienses, que atribuíam à moral e ética democráticas - em particular à estrita observância das leis da cidade - a glória de Atenas(7); na realidade, pese embora as acérrimas críticas dos sofistas à demagogia democrática e à ficção do primado da lei(8), o certo é que os soldados áticos lutaram nas guerras pérsicas em nome da liberdade dos gregos, enquanto que os lacedemónios o fizeram em defesa da glória de Esparta, como se lê nos respectivos epitáfios dos combatentes em Plateias(9). Isso não significa, porém, que na Grécia, inclusivé em Atenas, a democracia não tenha sido um epifenómeno em termos históricos (além de ter durado escassas décadas do século V a.C., reportou-se a um reduzido número de cidadãos e circunscreveu-se a pequenas áreas geográficas(10)).

Na centúria seguinte, mergulhada Atenas numa profunda crise social e económica, o discurso democrático perdeu definitivamente o apoio da intelectualidade, talvez um indício de que já não constituía motivo de orgulho para a generalidade dos habitantes de Atenas, uma turba de tetas desprovidos de direitos civis para os quais a legalidade e convivência democráticas eram quimeras(11). Nas vésperas da monarquia helenística, só a voz potente, mas isolada, de Demóstenes (que a conjuntura política havia tornado um paladino do decrépita democracia grega(12)), clamava pela restauração da ordem política vigente no século precedente, na tentativa de promover alianças pan-helénicas hostís ao expansionismo da realeza macedónia(13). Criticando a índole autocrática desta (bem como o colaboracionismo de muitos atenienses) nas oito Filípicas e na Oração da Coroa(14), Demóstenes manifesta nesta última a convicção de que a eficácia da monarquia, alicerçada na indivisibilidade do poder real, não lhe conferia qualquer superioridade intrínseca em relação à democracia(15).

Luta inglória a do insigne orador, num momento em que as concepções monarquistas são exalçadas pelo seu concidadão Isócrates no Nicoclès e no Archidamos, designadamente quando alude às vantagens provenientes da continuidade e unidade e do poder para garantir a subsistência da cidade e impedir a irresponsabilidade que sempre advém da partilha do governo(16). Em Isócrates estas ideias ainda se referem à organização de um exército capaz de assegurar a vitória das armas de Atenas sobre as do rei macedónio, mas no caso de Xenofonte, é já uma evidente defesa do princípio monárquico, baseado na conceptualização de um monarca ideal, homem providencial cujo legítimo mando se baseia na observância das leis e recusa da arbitrariedade, circunstância que o distingue do déspota. Esta concepção de realeza, que Xenofonte descreve com precisão na Ciropedia, embora com alguma utopia, influenciará os inúmeros "espelhos de príncipes" redigidos desde os tempos medievos até finais do Antigo Regime, vindo a tornar-se uma das principais fontes inspiradoras do conceito de "rei-filósofo" defendido meados de setecentos(17).

À semelhança do que já sucedera no Symposium, Xenofonte toma a educação do príncipe como pretexto para se opor às ideias expendidas pelo seu rival Platão em A República. A indistinção entre o regime aristocrático liderado pelos filósofos e a monarquia onde reina um rei-filósofo(18), mostra bem como para Platão a questão da indivisibilidade do poder era um assunto secundário, ao invés do que sucedia com Isócrates e, sobretudo, Xenofonte. Contudo, a lógica interna do pensamento político de Platão leva-o a propugnar a eleição de governantes que sejam sábios e virtuosos, atributos mais fáceis de encontrar reunidos num só indivíduo do que em vários. A este monarca iluminado, intelectual e moralmente superior ao comum dos mortais, Platão concede absoluta liberdade para edificar o estado ideal, desobrigando-o de esguardar a legislação e tradições da cidade, ideia pouco conforme com a tradição política grega, desde sempre respeitadora do princípio fundamental da soberania da lei(19) (Xenofonte, por exemplo, recusou sempre conceder aos reis o uso arbitrário do poder, considerando o acatamento das leis pelos monarcas aquilo que diferenciava a monarquia da tirania(20)).

Platão, no entanto, identificava a tirania com os desvairados apetites aquisitivos(21) dos oligarcas e democratas, não com o poder irrestrito de um ente iluminado, como sucedia com o seu rei-filósofo. Para ele, o absolutismo régio justificava-se pelo facto de não caber aos governados escolher os governantes mas somente aquiescer ao seu poder - necessariamente benéfico para os vassalos -, e das normas jurídicas não passarem de empecilhos à liberdade de decisão e, consequentemente, prejudiciais para a dinâmica exigida pela edificação do estado ideal(22). Esta visão radical do poder absoluto dos reis teve resultados desastrosos; desgostado com a interpretação tirânica que os reis sicilianos viriam a fazer das suas propostas políticas, Platão escreve, já na velhice, o Politicus, onde, mais atento às imperfeições humanas, conclui ser inexequível a aplicação integral do modelo de governo exposto em A República, mostrando-se também mais consciente da relatividade das leis e importância dos costumes(23). Com esta evolução do pensamento platónico não se identificaram os séculos vindouros, nomeadamente o dezoito, altura em que os partidários do Iluminismo preferiram o voluntarismo de A República à lucidez do Politicus, por ser naquela e não neste que encontraram melhor defendido o lema "tudo para o povo; nada pelo povo"(24).

Em Platão a monarquia era por definição electiva, já que o filósofo ateniense achava impossível que a sapiência e virtudes do rei-filósofo fossem transmissíveis a outrem. Aristóteles, pelo contrário, previa a possibilidade de os deuses poderem outorgar dons excepcionais tanto a um homem providencial como a toda uma linhagem(25), mas esta aceitação do príncipio da sucessão régia, não torna o estagirita um realista convicto, até porque ele considera a monarquia electiva tão válida quanto a hereditária, preferindo uma ou outra consoante a índole de cada povo. Acima de tudo, Aristóteles recusa a conveniência universal da monarquia (apenas útil para alguns estados(26)) e rejeita, implicitamente, a alegada superioridade e eficácia da unidade do poder real(27), quando sustenta que a eficiência das democracias reside na circunstância de a autoridade ser pertença do povo e não de um pequeno número de notáveis(28). Além disso, discorda das vantagens procedentes de uma ampla concentração de poderes nas mãos do soberano(29), embora reconheça que o centralismo monárquico facilita a administração dos grandes espaços geográficos (reinos e impérios)(30), ideia que viria a ser partilhada pelo Iluminismo setecentista(31). Na verdade, tendo em consideração os cinco tipos de monarquia que enumera em A Política, constatamos que o carácter indivisível e hereditário do poder régio não é comum a todos eles, como se deduz do seguinte extracto do Livro Terceiro (capítulo IX):

 

Registámos quatro classes de reinado: uma, a dos tempos heróicos, livremente consentida, mas limitada às funções de general, de juiz e de pontífice; a segunda, a dos bárbaros, despótica e hereditária em virtude da lei; a terceira, a que se denomina esimenetia, e que constitui uma tirania electiva; a quarta, finalmente, a de Esparta, que, falando francamente, não é mais que um generalato perpetuamente vinculado numa raça. Estes quatro reinados são suficientemente distintos entre si. Há um quinto reinado, no qual um único chefe dispõe de tudo, da mesma forma que noutros pontos dispõe o corpo da nação, o Estado, da coisa pública. Este reinado tem grandes relações com o poder doméstico, e assim como a autoridade do pai é uma espécie de reinado na família, assim o reinado de que aqui falamos é a única administração de família, aplicada a uma cidade, a uma ou a muitas nações.(32)

Em pleno século IV, conforme Aristóteles decerto saberia, mais não seja devido à sua íntima ligação com o autocrata Filipe da Macedónia (que o nomeara mestre do príncipe Alexandre), a monarquia dos tempos heróicos e a Esimenetia eram meras curiosidades históricas, a realeza lacedemónia uma instituição decrépita [Ver Anexo 4-C] e a dos Bárbaros (alude ao despotismo asiático) indigna da cultura e tradição helénicas(33). Restava unicamente a quinta; ou seja, a realeza paternal, porque reflexo da organização familiar, onde o soberano, à semelhança do "chefe da família", desfruta de um poder unido e hereditário, embora se distinga do tirano oriental pelas virtudes pessoais e nobreza das suas acções(34). Como é evidente, Aristóteles acreditava que a realeza macedónia podia e devia identificar-se com este último modelo de monarquia, interpretando de certo modo o sentir maioritário dos gregos que, cansados da degenerescência política e moral do regime democrático (corrupção generalizada e frequentes dissensões internas), ansiavam pela estabilidade governativa que só um soberano centralista lhes poderia proporcionar(35) [Ver Anexo 4-A].

Em finais do século IV, após as conquistas realizadas por Alexandre Magno no Oriente, a monarquia helenística adoptou progressivamente o costume asiático de divinização dos reis(36), um processo que embora repugnasse ao racionalismo e democratismo helénicos, não deixou de se intensificar, atingindo o auge sob o governo dos monarcas selêucidas e ptolemaicos(37). Ainda assim, e de modo algo paradoxal, essa deificação não destruiu as tradicionais liberdades e virtudes cívicas das cidades gregas (apesar de pressupor a total obediência do súbdito ao sumo imperante), porque colocou a questão da realeza no plano religioso e não político, permitindo compatibilizar a crença religiosa com os direitos da cidadania(38) (esta separação, contudo, aceite com naturalidade pelos gregos, era absolutamente incompreensível para os outros povos orientais submetidos por Alexandre Magno, incapazes de conceber um monarca não divino(39)). No século III a.C., a teose dos monarcas helenísticos surge já como o principal tema de reflexão dos vários tratados sobre a monarquia (Peri basileias), sendo claro o intuito dos teóricos políticos de fazerem depender a legitimidade do rei das vitórias militares por eles alcançadas (prova insofismável da sua Fortuna [Tyche], que constituíam sinal inequívoco da preferência divina. Isso não significava, porém, como verificamos em Da realeza de Teofrasto de Efeso (continuador de Aristóteles no Liceu), que a função régia simbolizada no ceptro (Skeptron) se fundasse exclusivamente no direito da força, conforme sucedia com os tiranos, mas também na legitimidade dinástica, pois esta surge já então como condição sine qua non de um governo ilustrado e justo, segundo se lê na Carta de Aristeia, escrita por um judeu de Alexandria no reinado do monarca egípcio Ptolomeu II(40). As concepções helenísticas sobre as virtualidades da realeza repousam, todavia, no princípio da sucessão hereditária, que, reservando o trono à prole de um deus, garante a existência de consecutivas gerações de monarcas possuidores de uma "racionalidade operativa" - areté -(41), um conjunto de qualidades que confere aos reis helenísticos a condição de benfeitores (Evergete) e salvadores (Soter)(42), representando-os outrossim como a encarnação da lei (Nomos empsyjós)(43) e mantenedores da ordem sócio-económica (também neste aspecto se observa a influência oriental pré-clássica(44)), faculdades excepcionais e únicas que os protegem de qualquer tentativa de usurpação do poder(45).

No século III a.C., quando a monarquia helenística atingia o zénite da glória, em Roma a realeza era execrada e considerada tirânica pelos aristocratas. A aversão dos senadores e magistrados em relação ao modelo monárquico levou-os a temer que Júlio César reivindicasse para si o título de rei após a conquista do Oriente, pois, segundo as predições dos Livros Sibilinos, essa conquista seria realizada por um monarca(46). O governo autoritário do general romano parecia confirmar tal receio, excitando ainda mais o anti-monarquismo visceral dos ideólogos republicanos, motivo por que os conjurados após o apunhalaram no Senado (Idus de Março de 44 a.C.), se refugiaram no Capitólio e, segundo escreve Apiano, diziam ter executado o tirano para recobrarem as liberdades e direitos cívicos. Contudo, conforme esclarece este historiador romano do século II, a falta de apoio popular frustrou a estratégia dos tiranicidas, sinal de que a república romana, desde sempre dominada por uma oligarquia turbulenta e ciosa dos seus privilégios, jamais contara com o apoio da plebe(47), apesar de Brutus o Antigo, à data da implantação da República em finais do século VI a.C., justificar a deposição do rei Tarquínio pelo facto de as atitudes despóticas deste desmerecerem do carisma mágico-religioso inerente ao processo de designação do rei romano(48).

Sabe-se que os conspiradores, após terem executado o dictator perpetuo, gritaram o nome de Cícero, pretendendo com esse gesto significar o seu apoio a alguém considerado por todos como um paladino do republicanismo. Com efeito, a evolução da conjuntura política resultante a derrota de Pompeu em Farsália, conduziu o prestigiado senador a um transitório empenhamento na defesa das frágeis instituições republicanas(49), mas isso não significa que ele fosse um anti-monárquico convicto, pois ao advogar o seu modelo de "constituição mista", inspirado nas ideias políticas de Políbio(50), coloca a realeza numa posição de preeminência. No De Republica preocupa-se com a instabilidade política da administração republicana e aceita que a situação só pode ser solucionada com recurso a um poder forte(51), entregue a um pequeno número de homens de elite - os príncipes (pessoas singulares em virtudes e autoridade, imbuídas de uma sabedoria grega reforçada pela educação romana(52)) - ou, de preferência, a um só monarca, revelando neste passo da obra a admiração que lhe merecem a simplicidade e unidade das monarquias(53). No De Oficiis, por seu turno, ao mencionar as Leis das XII tábuas, apresenta a instituição histórica de um poder real unitário e íntegro como uma consequência da necessidade de administrar a Justiça, a melhor garante do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei(54).

A instauração do império por Octávio reforçou o poder unipessoal - em gérmen durante a ditadura de César - e desencadeou a progressiva debilitação da instituição senatorial, afectando também o prestígio da magistratura romana e provocando a progressiva desaparição dos comícios da plebe. A "constituição mista" da Roma republicana, elogiada por Políbio e Cícero por promover a simbiose perfeita entre as diferentes formas de governo conhecidas na Antiguidade Clássica, perdia doravante todo o sentido, pois desaparecera o equilíbrio entre o elemento monárquico, aristocrático e democrático, situação que conduzira ao reforço do primeiro, enfraquecimento do segundo e quase supressão do terceiro(55). Apesar disso, conforme percebeu Gibbon no século XVIII, a constituição do principado preservou até ao início do século IV, pelo menos formalmente, uma certa dualidade monárquico-republicana(56), reconhecendo, na linha da tradição greco-romana, ser a liberdade senatorial mais apropriada ao governo da cidade de Roma e das províncias já romanizadas (Itália, Grécia, Bética, Numídia, Cirenaica, Narbonense, etc.), enquanto a pacificação das restantes (Hispânia, Gália, Síria) e defesa limes (na Ásia Menor, Germânia ou ao longo do curso do Danúbio), estava cometida à administração imperial.

A evolução política nos três primeiros séculos da era cristã fez-se, porém, no sentido de colocar a plenitude da potestas na pessoa do imperador(57), razão por que os principais teorizadores políticos do século I se preocuparam em definir o ideal de princeps; ou seja, uma realeza justa (podemos constatar esse cuidado nos escritos de Séneca, preceptor de Nero, que reflectiu maduramente sobre a tríade rei-tirano-sábio e viu na corrupção a principal causa do despotismo(58)). O mais interessante, contudo, é que a maioria dos imperadores do século I são apresentados pela historiadores coevos como sendo a antítese do princeps, principalmente por carecerem de virtudes e sabedoria. Na sátira de Séneca intitulada Ludus de morte Claudii, obra que Dion Cássio viria a denominar Apocoloquintose - transformação em abóbora -, põe-se em evidência a imbecilidade e os defeitos físicos de Cláudio Druso (o imperador era coxo)(59); décadas depois, em Os doze Césares de Suetónio, os soberanos das dinastias Júlio-Cláudia e Flávia são qualificados de tiranos, embora a intenção do secretário de Adriano fosse ensombrar a memória dos fundadores do regime imperial para agradar ao seu senhor, cujo governo caminhando para a mais rigorosa autocracia, não podia exaltar a memória de imperadores que, apesar de centralizadores, não tinham anulado por completo o poder do Senado(60). É neste contexto, aliás, que devemos entender a passagem que no final do livro nos revela a alegria dos senadores ao receberem a notícia do assassínio de Domiciano:

 

O povo acolheu com indiferença a morte de Domiciano, os soldados, com indignação. Quiseram logo que ele fosse proclamado divino, prontos, mesmo, a vingá-lo, caso tivessem encontrado um chefe, o que fizeram pouco depois, persistindo em exigir o suplício para os autores do crime. Os senadores, pelo contrário, sentiram com essa morte tanta alegria, que na cúria, completamente cheia, ultrajaram a memória do morto com um género de aclamações tão infamante quanto cruel.(61)

 

2. A tradição medieval e renascentista.

 

2.1. A sagração da realeza: "Podemos com toda a certeza chamar cristos a todos os que foram ungidos com o seu unguento (chrisma) [de Jesus], porque todo o corpo com sua cabeça é um único Cristo." [Santo Agostinho, A Cidade de Deus (413-426), Livro XVII, Capítulo 4º.]

Em o Declínio e queda do Império Romano, Edward Gibbon critica os imperadores romanos por terem faltado à sua costumada prudência e modéstia quando aceitaram ser deificados, acusando-os de cederem a um servil e ímpio modo de adulação(62). O historiador inglês chega mesmo a louvar Octávio por apenas ter tolerado esta superstição popular, classificando Calígula e Domiciano de loucos por a incentivarem, mas o certo é que a sua opinião racionalista, própria do Iluminismo, peca por anacronismo e desvaloriza uma tendência que não deixou de se reforçar nos prímeiros séculos da era cristã. Na verdade, no início do século I o filósofo hebreu Filon de Alexandria qualificava de "real" a soberania exercida por Deus sobre o Universo(63) e, nos finais da centúria, Dion Crisóstomo fazia o mesmo ao sustentar haverem os reis sido escolhidos pela divindade suprema, sendo, por esse motivo, seus vicários na Terra, um argumento que lhe permitia comparar a majestade divina com a temporal(64).

A conversão de Constantino ao cristianismo não pôs termo a este costume que, no quadro de uma religião monoteísta, só poderia ser tido por idólatra, como efectivamente chegou a ser julgado pelos primitivos cristãos(65). A Igreja, no entanto, mostrou-se pragmática, equiparando a missão do Império na esfera do temporal à da Igreja no domínio espiritual(66), legitimando assim a sacramentalização do soberano, conforme podemos constatar nas obras de Eusébio de Cesareia (Elogio de Constantino e Teofania evangélica), o primeiro bispo a ver no Império Romano um instrumento colocado ao serviço de Deus para a difusão do Evangelho e a elaborar uma autêntica teologia imperial cristã, que atribui aos bons imperadores - não os apóstatas ou pagãos - a sagrada função de serem mandatários dos desígnios divinos(67).

A visão de Eusébio de Cesareia não era pacífica, temos de o reconhecer, pois Santo Ambrósio, nascido na geração seguinte à do bispo palestino, e que, tal como este, foi um alto dignitário da Igreja (além de membro do conselho imperial), recorre às imagens de Virgílio sobre a república das garças e a monarquia das abelhas para preferir aquela a esta, dizendo que a primeira imita o paraíso celestial, enquanto a segunda simboliza uma sociedade imperfeita fruto do pecado original(68). A ousadia do bispo de Milão tinha efeitos puramente teóricos, é certo, mas nem por isso deixava de ser algo perturbadora para uma Igreja interessada num entendimento cordial com o poder temporal e que, provavelmente, se reveria melhor no Ambrosiaster (denominação dada por Erasmo de Roterdão ao autor desconhecido de um comentário das cartas de S. Paulo datado do século IV), onde se vai muito além do apóstolo no concernente à submissão dos vassalos aos seus soberanos, defendendo-se que estes devem ser cultuados por serem representantes de Deus(69).

Santo Agostinho, pese embora a frase extraída de A Cidade de Deus acima citada(70) e os rasgados elogios dedicados aos imperadores Constantino e Teodósio, nunca identifica a cidade divina com nenhum imperador cristão. Não existe, evidentemente, qualquer objecção do bispo de Hipona ao princípio da obediência devida pelos súbditos aos monarcas, e muito menos se põe em dúvida a obrigação de o estado observar os preceitos evangélicos (bem visível quando exorta os príncipes cristãos a combaterem os donatistas), mas isso de modo algum significa a atribuição aos césares de qualquer condição divina, que é pertença exclusiva de Deus(71). Nesse sentido, o pensamento agostiniano é o precursor da concepção política medieva que exige dos reis uma postura condizente com os ditames cristãos (caso contrário serão apodados de déspotas), sem que isso implique necessariamente a sua deificação; Santo Isidoro de Sevilha é, talvez, o que melhor explica o modelo patrístico do soberano cristão não divinizado, magnificamente resumida numa frase inscrita nas Etimologias: Rex eris, si recte facias: si non facias, non eris - Serás rei se obras com rectidão, se não obras assim, não o serás -(72). A progressiva centralização do poder régio ao longo da Idade Média não subverteu pura e simplesmente este princípio, mas também é verdade que houve a intenção, inclusive por parte da própria Igreja, de recuperar o carácter sagrado da realeza cristã, propósito de algum modo já embrionário na legitimação e sacralização das monarquias asturiana e merovíngia, simbolizadas no auxílio divino prestado a Pelágio na batalha de Covadonga(73) e no baptismo de Clóvis(74) [Fig. 19]. É esta longa tradição, cuja origem remonta à génese das monarquias bárbaras(75) e se estabelece em definitivo no época carolíngia(76), a responsável pelo ressurgimento do costume de canonizar os soberanos a partir de meados do século XII, sendo os exemplos mais conhecidos o do imperador alemão Henrique II de Hohenstaufen e da sua esposa Cunegunda do Luxemburgo(77), de Fernando III de Castela, São Luís de França e, até, do avô deste último, Filipe Augusto, que também chegou a granjear fama de santidade(78). Saliente-se, porém, não estarmos perante uma situação de absoluta divinização da pessoa do rei, semelhante à acontecida nos tempos helenísticos, mas é inquestionável que os monarcas do ocidente medieval foram considerados "eleitos" de Deus(79), sendo a preeminência (ordinatio ad unum) e unidade (unicus principatus) do seu poder a perfeita imitação terrena do governo celeste(80), tal como o rei era uma fiel imagem de Deus, segundo asseveraram João de Salisbúria no Policraticus (séc. XII)(81) e Guilherme de Ockham no Breve discurso sobre o governo tirânico (séc. XIV)(82), neste particular seguidos por vários outros teorizadores políticos ao longo de todo o Antigo Regime:

 

Ce vicariat fait alors du roi l'image du Père (Hugues de Fleury), la vivante image de Dieu (Suger), Dieu sur terre (Terrevermeille, Abbon, Grassaille), l'image de Dieu en terre (Bodin, Domat, Duchesne), un dieu corporel (Savaron), le lieutenant de Dieu en terre (Loyseau)...; selon Bossuet, les rois tiennent la place de Dieu [...] lequel en fait des dieux et pour Louis XIV: exerçant une fonction divine nous ne manquons pas de reconnaissance [...] pour celui dont nous ne sommes que les lieutenants.(83)

Uma gravura de François Demoulins inserta nos Commentaires de la guerre galique (1519) [Fig. 20], figurando Cristo crucificado a segurar em cada uma das mãos a coroa e o estandarte da França(84), vem corroborar estas afirmações, já que pretende significar ser Deus o verdadeiro sustentáculo do poder do Rei Cristianíssimo e, consequentemente, o único juiz dos seus actos. Nenhuma outra monarquia da Europa Ocidental igualou a francesa na persistente ambição de deíficar os reis (só ela atribuiu aos seus monarcas poderes miraculosos, uma tradição que Napoleão, com grande finura política, ainda praticava no último ano do século XVIII nos bairros miseráveis de Jaffa(85)), mas isso de nenhum modo significa que não encontremos noutros reinos idêntica pretensão, embora mais moderada, como sucede no Portugal de quinhentos (consequência inevitável da política de centralização régia), seja nos esforços envidados por D. João III junto do papado para promover a canonização do fundador do reino(86), ou nas conjecturas sobre as obrigações dos reis e sacralidade da monarquia lusitana expostas, respectivamente, pelos tratadistas políticos(87) e humanistas(88), com especial relevo para Damião de Góis, que chegou a aceitar elaborar para o infante D. Fernando - irmão do rei Piedoso - uma genealogia que fazia remontar aos tempos bíblicos a origem da casa real portuguesa(89).

O Cristianismo herdou do Baixo-Império uma multissecular tradição de divinização dos monarcas e, mesmo tendo limitado a sua amplitude, como cabia a uma religião monoteísta, não a enjeitou por completo, chegando mesmo a sancionar a ideia de que o carácter sacramental da monarquia provava ser esta a forma de governo mais apropriada à Cristandade. No Renascimento, apesar das "mensagens"(90) humanista e científica legadas à posteridade, persistiu a concepção de uma realeza terrestre feita à imagem e semelhança da celestial(91), de que a pintura coeva nos dá sobejos testemunhos, como é o caso do Rosenkranz, um quadro onde podemos ver os séquitos pontifício e imperial venerando a rigidamente hierarquizada corte celeste(92) [Fig. 21].

 

 

 

2.2. Elogio da unicidade do poder real pelos tratadistas desde o século XIII ao XVI: "Nem pai e filho, nem maior e menor irmão, devem governar juntamente" [Aristóteles citado in André Rodrigues de Évora, Sentenças para a ensinança e doutrina do príncipe D. Sebastião (1554), fl. 9]

Em A Monarquia Universal, tratado político escrito por Dante Alighieri no biénio de 1308-1309, a unidade do poder real suscita vários encómios. Vítima das dissensões civis existentes naquela época em Florença (provocadas pelos lítigios políticos entre guelfos Brancos e Negros), que lhe viriam a custar o exílio, Dante apoia-se na autoridade do Filósofo - antonomásia de Aristóteles - e declara a Monarquia Civil como o melhor sistema de governo, uma verdade que supõe atestada pela razão e tradição(93). Assim como o indivíduo se subordina à sua inteligência, também as comunidades humanas devem submeter-se a um governo unitário, para preservarem a tranquilidade e beneficiarem das vantagens do viver em sociedade(94), para além do facto de, numa perspectiva tomista, ser absolutamente lógica a subordinação do particular - ordem da parte - ao universal - ordem do todo -(95). Algumas décadas depois, por volta de 1344, Frei Álvaro Pais expressa idêntica opinião no Speculum Regum (O Espelho dos Reis), nomeadamente quando afirma, após comparar o monarca cristão com o Pater familias e o pastor que apascenta o seu rebanho (razão por que deve procurar a felicidade dos súbditos(96)), que a atribuição de todo o poder a um só mandante está prevista na própria natureza das coisas(97). Sem a unidade do poder real, segundo refere o bispo de Tavira, torna-se impossível manter a paz, em sua opinião a principal utilidade que presidiu à constituição da sociedade civil(98).

A indivisibilidade do senhorio dos reis é, por conseguinte, um princípio incontestável do pensamento político medieval. Dele decorrem, em suma, a exigência da presença física e simbólica do monarca enquanto senhor e dono da terra, a lealdade jurada pelos vassalos e a própria felicidade do reino, como se lê numa cantiga de escárnio portuguesa sobre as lutas civis de 1246-48 entre Sancho II e o conde de Bolonha:

Porque vos diz el que quer al rey mal,

ca ren non vee, assi deus mi perdon',

que el mays ama en o seu coraçon,

nem veerá nunca, e direy-vos al,

poys que ss' agora o reyno partiu,

prazer poys nunca don Estevam vyu

nem veerá jamays em Portugal(99)

 

A afirmação das concepções romanistas nas principais monarquias do ocidente europeu durante a Baixa Idade-Média, levou os juristas medievais a utilizar amiúde os termos Imperium, Maiestas e Auctoritas, para advogar a atribuição do exercício exclusivo das funções legislativa, judicial, administrativa e fiscal ao poder real. Estes princípios centralizadores estabeleceram-se definitivamente a partir do início do século XIV, e foi baseado neles que os reis de França se consideraram a autoridade máxima do reino - Le roi de France est empereur en son royaume -, uma pretensão que, a breve trecho, também será reclamada pelos demais príncipes da Cristandade(100). Os teóricos escolásticos trecentistas, por seu turno, como é o caso do famoso Guilherme de Ockham, declaravam expressamente que a superioridade da constituição monárquica residia precisamente na circunstância de sancionar a unicidade do poder real:

 

[...] as the Roman Empire was, since it was a universal empire over the whole world, wich is not best governed unless it is subject to one king, emperor, or ruler: for according to Aristotle in The Politics, kingship is the best constitution, and therefore unless one head has lordship of the whole world the best mode of ruling the world will be lacking. He is therefore not a true lover of the common good who does not desire and work as much as is permissible in his station to make the whole world subject to one monarch.(101).

A generalidade dos historiadores atribui a Maquiavel um lugar à parte no panorama da história do pensamento político europeu. Essa singularidade parece confirmar-se quando procedemos à análise externa das afirmações contidas nas obras do secretário florentino, em particular quando elas relegam para segundo plano, como sucede em O Príncipe e no Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio, as grandes questões ideológicas ponderadas pelos teóricos medievais, nomeadamente a origem, natureza e finalidade dos poderes espiritual e temporal, interrogações teológico-políticas que continuaram presentes nos escritos dos reformadores de quinhentos - quer sejam protestantes ou católicos - e também nos tratados dos filósofos seiscentistas, embora as conclusões a que chegaram Bodin, Hobbes, Pufendorf ou Locke, entre outros, fossem divergentes. Assim, seguindo a tradição aristotélica, todos estes pensadores buscaram definições para a política, enunciando a partir delas os direitos e deveres dos governantes e governados, mas raramente se ocuparam, como o fez Maquiavel, com a prática efectiva do poder e os condicionalismos que afectam os agentes políticos na sua acção quotidiana(102), sempre dependente de acasos e imprevistos, que sujeitam o fenómeno político aos caprichos irracionais da Fortuna, soberbamente explicitada na evocação histórica que faz das venturas e desditas dos poderosos em O Príncipe, na Vita de Castruccio Castracani da Lucca e na Mandrágora(103).

Contudo, esta "originalidade" raramente resiste a um conspecto mais minucioso das ideias de Maquiavel. É o que sucede, por exemplo, com a sua alegada preferência pelo governo republicano em detrimento do monárquico (para muitos bem patente no apreço que lhe merecem a República Romana e o exercício de uma cidadania responsável(104)), embora pareça evidente tratar-se de uma escolha ideal, pois não deixa de reconhecer as fragilidades do regime democrático, devastado pela corrupção e dividido pelas facções, onde a liberdade é sacrificada ou imposta de modo violento. Esta visão negativa da democracia concreta em Maquiavel, percebida por Bartolomeu Filipe no Tractado del Consejo y de los consejeros delos Príncipes(105), leva-o a optar na prática pela monarquia absoluta, preferindo-a à república ou à realeza feudal, porque só ela assegura o governo unitário(106). Nesta conformidade, Maquiavel difere, afinal, muito pouco da generalidade dos seus pares renascentistas, sobretudo de Frei António de Guevara, cuja opinião sobre esta questão acaba por não ser muito diversa, pois também este teórico espanhol, apesar de fiel à tradição franciscana de exaltação de uma sociedade natural (onde, devido à inexistência de pecado, era desnecessário um poder temporal, conforme já fora implicitamente admitido pela patrística e escolástica medievais(107)), percebe quão fantasiosa é essa posição de princípio e passa de imediato ao elogio da monarquia, o regime mais perfeito porque concentra todo o mando nas mãos de um monarca ilustrado - um autêntico rei-filósofo que preside às três ordens tradicionais (oratores, belatores e laboratores)(108) -, condição imprescindível à manutenção da paz civil:

 

Como el hombre naturalmente sea politico, que es ser amigo de compañia, la compañia engendra embidia; [la embidia] pare discordia; la discordia cria la guerra; la guerra levanta la tyranía; la tyranía dissipa a la república; y, perdida la república, tienen todos en peligro la vida. Por esso es muy necessario que en todo ayuntamiento muchos se rijan por uno, que al fin no ay república bien regida sino la que por un solo bueno es governada. Los muchos inconvenientes que hallaron los antiguos en el tiempo passado les hizo venir a que en la república todos obedeciessen a uno, pues vemos que en el campo todos obedecen a un capitán, en la mar todos a un piloto, en el monasterio todos a un prelado, en la Iglesia todos a un obispo, en la colmena todas a una abeja; y pues las abejas no están sin rey en la colmena, no es justo estén los hombres sin rey en la república; porque de otra manera en la colmena de las abejas avría miel y en la república de los hombres avría hiel.(109)

Castiglione, no entanto, sintetiza melhor este assunto numa passagem do seu livro O Cortesão em que descreve o debate havido entre Pietro Bembo e Ottaviano. Neste diálogo, o primeiro manifesta a sua discordância em relação à possibilidade dos indivíduos alienarem em favor de um só a liberdade que lhes foi outorgada por Deus, chegando a ser persuasivo quando refuta a pertinência da comparação entre a comunidade dos homens e a das abelhas, alertando para o facto de estas abdicarem da sua liberdade em favor de uma rainha que não é da sua espécie, algo que seria impossível no caso dos homens, pois os reis são tão humanos quanto o mais humilde dos seus vassalos(110). Na replica a Pietro Bembo, Ottaviano evoca as ideias de Políbio e Cícero sobre as três formas ideais de governo (monarquia, aristocracia, democracia) e respectivas perversões (tirania, oligarquia, oclocracia), para concluir que se o pior regime é o tirânico, então o melhor só pode ser o seu oposto; isto é, o monárquico. Além disso, a liberdade individual não consiste em fazer tudo o que nos apraz, mas sim viver de acordo com leis justas, porque obedecer é tão natural e útil quanto mandar. Acresce, ainda, que a maioria dos homens não tem capacidade para conhecer os seus verdadeiros interesses, agindo mais em função dos apetites do que da razão, estando por isso constrangidos a obedecer aos mais esclarecidos. Instado por Gasparo - outro conviva - se era lícito pedir à minoria de esclarecidos que se submetessem a um rei, Ottaviano responde que sim, devendo no entanto o príncipe delegar nesses indivíduos parte do seu poder (consoante as suas capacidades), mas sem perder de vista que, em última instância, o poder decisório lhe pertence em exclusivo(111), embora não seja lícito que aja a seu bel-prazer, porque caso o fizesse tornar-se-ia um déspota:

 

Thus, men have been put by God under princes, who for this reason must take diligent in order to render Him an account of them like good stewards to their lord, and love them and look upon every good and evil thing that happens to them as happening to themselves, and procure their hapiness above every other thing. Therefore the prince must not only be good but also make others good, like the square used by the architects, which not only is straight and true itself, but also makes straight and true all thigs to wich it is applied. And it is a very great proof that the prince is good if his people are good, because the life of the prince is a norm and guide for the citizens, and all behavior must needs depend on his behavior; nor is it fitting for an ignorant man to teach, or for a disordely man to give orders, or for one who falls to raise others up.

Hence, if the prince is to perform these duties well, he must put every effort and care into acquiring knowledge; let him then erect within himself and in every regard follow steadfastly the law of reason (not one inscribed on paper or in metal, but graven upon his very mind) so that it will always be not only familiar to him but ingrained in him and that he will live with it as with a part of himself; so that day and night in every place and time, it may admonish him and speak to him within his heart, removing from him those turbulences that are felt by intemperate minds wich - because they are oppressed on the one hand, as it were, by a very deep sleep of ignorance, and on the other, by the turmoil wich they undergo from their perverse and blind desires - are shaken by a restless frenzy as a sleeper sometimes is by stange and horrible visions.(112)

A apologia da unicidade do poder régio aparece igualmente defendida no pensamento político português renascentista(113), sendo também entre nós uma consequência do processo de centralização política em curso na Europa desde meados do século XV (uma ideia quase incontroversa para a historiografia actual)(114). Esta situação, porém, tanto em Portugal como no resto da Europa Ocidental, embora resulte de um inequívoco fortalecimento do poder real, não traduz necessariamente uma fundamentação teórica do absolutismo régio (algo que só virá a suceder em França e na Inglaterra no segundo quartel de seiscentos), estando pois em perfeita síntonia com a extensão e limites do exercício do poder real previstos pelo saboiano Claude Seyssel em A Monarquia de França (1519), obra patrocinadora do princípio romanista solutus a legibus e defensora da ideia de um monarca que, apesar de ter sido investido por Deus e personificar a ordem por Ele instituída, não é de modo algum omnipotente, estando mesmo obrigado a submeter-se às leis fundamentais do reino e a favorecer a existência de uma nobreza forte e prestigiada (única garante do status quo socio-jurídico vigente), mormente respeitando os seus privilégios económicos e prerrogativas institucionais(115).

Esta visão de Seyssel, baseada no conceito de monarquia temperada da escolástica medieval (oriundo da concepção aristotélica de regime misto), embora já merecesse naquela época algumas reservas à maioria dos juristas franceses (mais entusiastas dos princípios absolutistas(116)), era ainda aceite sem grandes restrições por todos os monarcas renascentistas, inclusive pelo português, conforme nos revela D. Sancho de Noronha ao congratular-se, no discurso proferido nas cortes de Almeirim de 1544, com o facto de D. João III ter cumprido a promessa de auscultar de dez em dez anos os três estados de seus reinos às coisas para o descanso deles convenientes(117).