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Sua Majestade Fidelíssima

SMF - PARTE I - Capítulo I

DA MONARQUIA E IMAGEM DA REALEZA IDEAL

CAPÍTULO I

EM DEFESA DA MONARQUIA UNA E SAGRADA

1 - Das vantagens da monarquia:

As personalidades mais excelsas consideraram a monarquia como a melhor forma de república [Jean Bodin, Os seis livros da República, Livro VI]

Eis aqui o que me obrigou a pegar na pena, buscando por assunto do meu discurso provar que a monarquia é o melhor de todos os governos; e que os nossos reis são os mais absolutos e legítimos senhores de seus reinos. Estas duas verdades têm, ainda que o não pareçam, recíproca dependência e a maior conexão; porque se eu provar que a monarquia é o melhor dos sistemas segue-se que o mais absoluto dos soberanos é o melhor monarca; e se eu mostrar que este mais independente poder produziu melhores sucessos na paz e na guerra, tenho com esta experiência justificado a preferência que tem a monarquia sobre todos os governos.(1)

Afirmações ousadas, sem dúvida, estas que o terceiro Marquês de Penalva escreve em 1799 na sua obra intitulada Dissertação a favor da monarquia, onde se prova pela razão, autoridade e experiência ser este o melhor e mais justo de todos os governos. No derradeiro ano do século em que o absolutismo régio alcançara o zénite do seu prestígio e eficácia, poucos eram os que então se atreviam a pegar na pena para defender a realeza de direito divino ou os monarcas iluminados, detentores de jure, e não tanto de facto, da plenitude do poder temporal; esses reis que, julgando-se totalmente identificados com o Estado, tiveram a pretensão de personificá-lo. Por isso, o marquês de Penalva sabe que suscitará polémica, será mesmo censurado com acrimónia pela opinião pública ilustrada e progressista que pulula nos cafés de Lisboa, discutindo com paixão as novas vindas de Paris, os folhetos maçónicos que, à socapa, circulam de mão em mão, iludindo a custo, e nem sempre com êxito, os sequazes do intendente Pina Manique(2). Pouco lhe importa que esses entusiastas dos falsos filósofos o maltratem, apodando-o de contra-revolucionário, e isto porque é movido pelo nobre ideal de defender o sistema do país que [o] viu nascer, um incontornável dever patriótico, natural efeito da honra e da educação, logo não merecedor de recompensa e insusceptível de poder ser confundido com lisonja. Acresce, ainda, que não o faz apenas por dever cívico, mas também por estar convicto de que as virtualidades da monarquia absoluta não são apenas comprovadas pelas leis divinas ou pelos ditames da razão, mas também pela experiência antiga e, sobretudo, recente, como bem o demonstra a desordem jacobina, cujos excessos impedem um homem digno de fechar os olhos à evidência.

D. Fernando Teles da Silva Caminha e Meneses (1754-1818) era oriundo de uma família de gostos refinados, como notou o afectado Beckford(3), e possuidor de uma vasta cultura, bastas vezes demonstrada nos famosos salões literários efectuados no seu palácio de Santa Apolónia(4), na Academia Real das Ciências, de que era sócio honorário, e na da História, que lhe facilitou a publicação das suas obras. Além disso, desempenhava funções importantes no Desembargo do Paço, nas juntas dos Três Estados e do Tabaco, depois de haver sido governador das capitanias de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Seria absurdo, pois, considerá-lo um fanático anti-jacobino, comparável a um José Agostinho de Macedo ou quejandos; as suas opiniões nunca foram incendiárias e o panfletarismo não se quadrava com o sua postura assumidamente reflexiva. A circunstância de ser um alto funcionário da monarquia absoluta explica, em parte, as razões da sua predilecção por este regime e, nesse sentido, ela pode ser considerada como um testemunho inequívoco de que Rousseau estava certo quando lançara um argumento de suspeição sobre os publicistas defensores do sistema monárquico, dizendo que eles se haviam enredado e embaraçado nos seus sofismas ao dissertarem sobre o exercício da soberania nas monarquias, porque queriam usufruir da protecção e generosidade dos reis(5). Elucida parcialmente, dizíamos, dado ser injusto pensar que só o interesse imediato levava o marquês de Penalva a elogiar a monarquia tradicional, pois resulta notório da leitura dos seus textos que ele estava imbuído de um conjunto de ideais que emprestavam ao seu pensamento uma coerência ideológica avessa a qualquer lógica de puro oportunismo político.

A supremacia da monarquia releva, em seu entender, do facto de ser o único sistema de governo exequível. A natureza, afirma, reconhece-o desde logo no exercício do poder paternal, e a história ensina-nos que todas as sociedades organizadas, desde a mais remota Antiguidade, atribuíram aos reis o título de pais e pastores dos povos(6). Até os aborígenes do Maranhão, apesar da barbaridade dos seus costumes, quando se sentem ameaçados escolhem o mais dextro e forçoso dos seus companheiros; e depondo a sua natural fereza, lhe têm a mais fiel obediência, que lhe conservam enquanto dura o perigo que os une(7). Esta insistência no carácter paternal do poder régio e a valorização das virtudes peculiares dos soberanos não é neutra numa perspectiva político-filosófica, já que o marquês de Penalva sabe bem como os prosélitos do republicanismo insistem em desvalorizar semelhantes valores, como o fizeram os seus contemporâneos Thomas Paine no Senso comum e Rousseau em Do contrato social:

Desta mesma incoerência [refere-se à "inconstância" da monarquia resultante do facto de se regular pelo "carácter" do príncipe que reina ou dos validos deste] se tira ainda a solução de um sofisma muito familiar aos políticos reais [leia-se monárquicos]; é não somente o de comparar o governo civil ao governo doméstico, e o príncipe ao pai de família, erro já refutado, mas ainda o de dar liberalmente a esse magistrado todas as virtudes de que ele teria necessidade, e de supor sempre que o príncipe é o que deveria ser: suposição em que se baseia a convicção de que o governo régio é preferível a qualquer outro, por ser sem contestação, o mais forte e porque, para ser também o melhor só lhe falta uma vontade de corpo mais conforme à vontade geral.(8)

Estas ideias expendidas em 1762 pelo filósofo genebrino só conduziam à depreciação da função régia e a uma desconfiança em relação às intenções dos soberanos(9). Juízos desta índole ditariam em breve à derrocada da realeza absoluta, razão por que Goethe considerava ter terminado com Voltaire o mundo antigo e começado o novo com Rousseau, enquanto Madame Stael dizia que este incendiara tudo sem ter descoberto nada(10). O marquês de Penalva concordaria, sem dúvida, com estas asserções mas, descrente desse novo mundo, onde os reis eram dacapitados na presença das turbas revolucionárias - recorde-se que Luís XVI foi executado seis anos antes da publicação da Dissertação em favor da Monarquia -, preferia mostrar o carácter contranatura de semelhantes cogitações filosóficas, argumentando que nos tempos primevos os homens estavam em melhores circunstâncias para acertar, ou quando seguiram os primeiros impulsos da natureza, obedecendo ao seu chefe natural; ou quando, congregando-se, preferiram por experiência este modo [monárquico] de serem governados(11).

Não existe contudo, quer-nos parecer, razão para confundir esta concepção do marquês de Penalva com as teses naturalistas defendidas por alguns teóricos iluministas. Não vemos em a Dissertação a favor da monarquia nenhum pensamento explícito que vá no sentido de defender, como o fazia o barão d'Holbach, que a natureza é o princípio das ideias e formas políticas, ou que a exigência de viver sob o domínio de um monarca tenha directamente a ver com a imperiosa necessidade de ajuda mútua ou o usufruto pacífico dos escassos bens necessários à sobrevivência(12). Muito menos encontramos, como sucede em Montesquieu, uma visão restrita da natureza do regime monárquico, apenas considerada no respeitante aos elementos definidores do motivo de acção inerente ao princípio desta forma governo; a saber: observância das leis fundamentais, estrutura e função dos poderes intermediários, ausência de virtudes intrínsecas, noção crítica de honra nobiliárquica, - considerada em termos de vaidade individual(13) -, etc.(14). Na verdade, ao estabelecer uma conexão entre natureza e poder paternal, elegendo esse laço como o principal fundamento do poder real, o marquês de Penalva denuncia a influência que a escolástica tardia exerce no seu pensamento, pois é esta que advoga a ideia de que o poder do pai sobre o filho é um poder moral conferido directamente por Deus enquanto criador da natureza (como se lê no capítulo sobre a origem divina do poder político do Principatus Politicus de Francisco Suarez), sendo que este não é considerado uma dádiva independente da natureza, mas sim uma consequência necessária desta, uma vez que teve lugar no próprio acto de geração(15).

O marquês de Penalva não se nos apresenta, por conseguinte, neste particular, como um adepto entusiasta das posições iluministas. Não vislumbramos nenhum vestígio de reformismo no seu pensamento, como sucede com o enciclopedista Jaucourt quando elogia Henrique IV de França pela sua política económica e tolerância religiosa, ou ao verberar o belicismo e incultura de Luís XIV, cuja megalomania conduziu o estado à ruína. Não existe, de facto, qualquer laivo de "economicismo" no discurso monarquista do marquês de Penalva, nada que o compare ao reformismo do espanhol Feijoó, do russo Lomonossov ou dos alemães Leibniz e Christian Wolff, que acreditavam nas potencialidades da monarquia absoluta para promover reformas políticas, culturais e viabilizar a "racionalização" da actividade económica(16). É de todo inverosímil que baseasse a sua adesão à monarquia nos alegados benefícios materiais que esta, em princípio, assegurava melhor do que as repúblicas aristocráticas ou democráticas, como sucede no discurso fisiocrático de François Quesney, onde a acção do monarca é comparada, na esfera da soberania política, entenda-se, àquela que cabe aos proprietários, pois, à semelhança destes, também os reis possuem direitos hereditários, interesses económicos na produção (onde participam através do fisco) e, sobretudo, capacidade de decisão pessoal, por neles residir indiviso o exercício dos poderes legislativo e executivo, facilitando assim a sua capacidade de decisão com a consequente melhoria da eficácia administrativa, condição indispensável para o progresso de um estado cujo poder económico assenta no sector primário(17).

A feição patriarcalista do pensamento do marquês de Penalva, fundada no princípio da existência natural da autoridade paternal/marital no contexto familiar e real a nível político, inspira-se directamente na concepção que Sir Robert Filmer, influenciado por Platão e Aristóteles, defendera no Patriarcha em meados de seiscentos(18), e que John Locke refutou com veemência, ciente da boa receptividade que elas tinham na mentalidade popular(19). Afastado das teorias jusnaturalistas e contratualistas em voga ao longo do século XVIII no que respeita à origem da sociedade civil (ápice histórico em que tácita ou expressamente uma dada comunidade procede à escolha da forma de governo que mais lhe convém), o marquês de Penalva defende uma teoria divinizadora da origem do poder temporal em detrimento dos conceitos de "estado de natureza" e de "contrato social"(20). Acresce, ainda, que, na esteira de Filmer, faz depender do patriarcalismo o princípio da indivisibilidade da soberania régia, doutrina já exposta nos Seis livros da República (1577) por Jean Bodin (1530-1596)(21), onde o conhecido magistrado de Angers sustenta, recorrendo a uma sugestiva imagem de cariz antropomórfico(22) - Hobbes fará mais tarde o mesmo no Leviatã (1651-1652), como se constata na gravura do frontispício da primeira edição(23) [Fig. 1] -, que a superioridade da monarquia assentava na unidade e inalienabilidade do poder real(24).

É à luz desta tradição filosófica, que remonta aos finais de quinhentos e teve larga aceitação na centúria seguinte, que deveremos considerar as declarações do marquês de Penalva em prol da monarquia no ocaso do século XVIII. Com efeito, os ideais monarquistas que propugna estão eivados de um profundo conservadorismo, visível na sua rejeição da modernidade e apologia dos costumes legitimados pela História, interpretada a seu modo, como é óbvio, já que, no que toca ao assunto em consideração, não desconhece o pendor democrático e republicano dos períodos mais brilhantes da Antiguidade Clássica(25). Contudo, é na defesa do carácter unitário e inalienável do poder real que parece mais evidente a influência do pensamento político seiscentista, em particular na enumeração das vantagens provenientes da observância desse princípio, nomeadamente a prontidão e execução sem obstáculo das decisões - condição sine qua non para garantir a obediência dos vassalos - que o uso do poder ilimitado proporciona ao sumo imperante, o qual, segundo diz, é indispensável para restabelecer a tranquilidade, segurança e sólida liberdade em qualquer sociedade(26). O julgamento da legitimidade do exercício da soberania numa monarquia cabe apenas a Deus, que é só quem toma conta aos reis do modo por que exercitaram a soberania sobre os povos, evitando-se desse modo as consequências perniciosas do contraste das paixões, e a luta contínua dos perversos(27). Esta certeza, confirmada pela religião e luzes da razão, articula-se, por sua vez, com a já mencionada concepção patriarcalista da sociedade (visto ser o Estado uma grande família), como se verifica no seguinte extracto da Dissertação a favor da monarquia:

O exemplo, que nos dão as famílias particulares, é bem aplicável à grande família do Estado; e a ordem que vemos nelas, quando o senhor da casa mostra verdadeiramente que o é, serve de argumento da necessidade deste governo individual e não colectivo. Não se espere concórdia em soberania dividida; e se algum tempo vemos durar governos anti-monárquicos, ou é porque o mesmo espírito de vertigem ainda não deu lugar à reflexão de cada cidadão, ou porque o chefe do partido dominante serve de monarca no breve espaço que um novo usurpador lhe concede.

Eis aqui, portanto, como a experiência abona as verdades que uma sã doutrina nos tinha ensinado; de sorte que presentemente ninguém de boa fé duvida da bondade, ou preferência do governo monárquico; porque até os perversos não têm lucrado o que esperavam nas revoluções que provocaram, tendo grande parte deles pago com a vida o tumultuoso sistema que introduziram.

Aprendam as gerações futuras nos males do presente século a respeitar mais o seu Deus, o seu Rei e os seus costumes.(28)

Esta prelecção do marquês de Penalva sobre a perfeição da monarquia merece a nossa atenção. Não pelo seu ineditismo ou singularidade, mas apenas porque enuncia, de forma sistemática e lúcida, os argumentos veiculados nas vésperas do liberalismo pelos defensores do absolutismo, e que encontramos disseminados num razoável número de textos dos mais diversos géneros, desde os panegíricos aos sermões, como se lê num elogio dirigido em 1781 a D. Maria I(29) ou numa prédica recitada no púlpito de uma igreja do Recife durante os festejos da aclamação de D. João VI (1816):

Tal é, Senhores, o quadro do Mundo Político naqueles formosos dias [refere-se à deificação da realeza na Antiguidade]. Considerar neles um povo, por mais inculto, que se possa imaginar, é justamente admitir uma associação harmoniosa, cuja influência é a mesma monarquia. Debalde entusiastas espantadiços, nefários regeneradores, estonteados pelo calor de uma imaginação escaldada, trabalham por aviltar a vassalagem, excitando o súbdito a sacudir o mais amável, e delicioso jugo; a natureza lhes vitupera a conduta, assiduamente bradando, que não pende da convenção o jus da soberania: debalde estes simulados fautores da independência clamam pela conservação do estado livre; ele é só o pretexto, de que se utilizam para o bom êxito dos seus projectos; a morte, a escravidão, e a desonra, eis a liberdade, que aguarda o homem, que se deixa seduzir por uns monstros tão apóstatas da razão.

A monarquia, senhores, é o mais antigo, o mais sábio, o mais útil, e o mais consequente governo; porque nela vê-se a lei, sufragando sempre ao súbdito, por isso que o soberano é o pai, o protector do seu povo. Nela a subordinação é mais suave, o rigor mais temperado, a justiça mais dirigida, o vício mais reprimido, a virtude mais premiada; nela o Cidadão é menos servil, porque o despotismo é menos tolerado.(30)

A lição da História, sagrada e profana, eis a prova maior aduzida pelos autores conservadores para legitimarem a monarquia absoluta e provarem a sua superioridade em relação a qualquer outra forma de governo. Resta apenas averiguar, o que faremos no capítulo seguinte, se todo esse arrazoado tem, de facto, alguma verosimilhança histórica.

 

2. Da preeminência do poder real: "Más se saca de la dependencia que de la cortesia [...] acabada la dependencia acaba la correspondencia, y con ella la estima" [Baltasar Gracián, El arte de la prudencia (1647), nº 5.]

O saciado depressa volta as costas ao seu benfeitor e a laranja, depois de espremida, cae del oro al lodo, afirmava Baltasar Gracián na Arte da Prudência, sustentando que a experiência ensina aos mais avisados o dever de incrementar a necessidade para gerar a dependência, e jamais satisfazê-la por completo, porque nesse caso terminaria a obediência, inclusive, como faz questão de salientar o jesuíta aragonês, a devida pelo vassalo ao seu soberano(31).

A originalidade dos aforismos sobre a prudência cortesã coligidos por Gracián em El arte de la prudencia é inquestionável, ao ponto de estas sentenças terem influenciado outros vultos cimeiros da cultura europeia seiscentista (vejam-se as Réflexions ou sentences et máximes morales de La Rochefoucauld e os Caractères de La Bruyère). Na verdade, o sábio conselho acima referido representava, de certo modo, uma ruptura da complexa sociedade de corte da Europa barroca em relação a uma tradição multissecular que enfatizava a obrigação de os reis honrarem a nobreza, porque é esta que, conforme refere Cristina de Pisa em O livro do corpo político (início do século XV), defende com a sua intrepidez guerreira o trono e o reino(32), uma perspectiva que ainda pontificava nalguns teóricos da segunda metade de quinhentos (é o caso de Francisco de Monzón no Libro segundo del espejo del principe christiano(33)), apesar de nessa época ser já bem visível que a distribuição pelo poder real de honras e benesses aos nobres, não dependia tanto do valor militar destes, mas sim da sua disponibilidade para se submeterem às estritas regras da corte, cuja utilidade consistia, precisamente, em sublinhar as prerrogativas institucionais da realeza e a crescente dependência da fidalguia face ao poder arbitrário do monarca(34).

O perspicaz Maquiavel, ao contrário de Cristina de Pisa, compreendeu perfeitamente em O Príncipe (1513) e no Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio (1519) que a cessão ao poder régio da gestão das honras e privilégios, favorecia a igualitarização dos súbditos perante o trono, salvaguardando a fidelidade dos vassalos ao sumo imperante, sem dúvida um factor decisivo para acautelar a prossecução dos superiores interesses do governo monárquico(35). Passados alguns decénios, Jean Bodin no livro sexto da República (1576), embora considere a concessão de privilégios nobiliárquicos como um dever dos soberanos à luz do princípio meritocrático da justiça distributiva (que os obriga a agir com tacto político e não de acordo com as suas conveniências momentâneas ou afeições pessoais), aceita sem reservas a atribuição exclusiva desse poder aos reis, atribuíndo a estes a missão de regularem as tensões sociais e garantirem do equilíbrio social(36). Esta hegemonia do poder real estava já a consolidar-se em França no início do século XVII e acabou por triunfar cem anos depois(37); na realidade, todos os monarcas Bourbons mostraram-se convictos de que a coroa só estava sujeita à vontade divina(38), servindo-se dessa independência em relação a qualquer poder humano, para conferirem à pessoa do rei o monopólio da autoridade, tornando a coroa responsável pela manutenção da ordem pública, nomeadamente através da subalternização dos privilégios corporativos - sobretudo os da grande nobreza - e dando ênfase à "razão de estado" que, na França do século XVII, ia no sentido de implementar a unificação política, jurídica e fiscal do reino(39).

A nobreza hereditária francesa não perdeu, como é evidente, a posição de prestígio que detinha nas altas esferas políticas; os seus mais lídimos representantes continuaram a exercer cargos de responsabilidade e, no círculo restrito dos conselheiros régios, a sua presença e influência manteve-se firme. A única alteração é que ela deixou de ser um grupo de pressão adverso à afirmação da potestade real, estando as suas conveniências políticas e económicas submetidas, mormente a partir do reinado de Luís XIV(40), aos interesses do monarca e refreados pela férrea disciplina da corte(41). Este êxito da realeza francesa, doravante incumbida da suprema missão de preservar a ordem política vigente, não tornou o Rei Cristianíssimo, conforme precisava Bossuet na sua Politique tirée de l'Écriture Sainte - numa flagrante admoestação dirigida a Luís XIV -, num detentor absoluto do poder temporal, pois a origem divina deste senhorio coagia os bons reis cristãos a subordinarem-se à vontade de Deus(42).

O Altíssimo é, por definição, um ente inacessível ao comum dos mortais, e sendo o monarca o seu vigário no domínio secular, surge inevitavelmente aos olhos dos súbditos como o centro de gravidade do poder político-religioso que caracteriza a monarquia absoluta. Neste contexto, o soberano converte-se numa espécie de divo, autêntico ser sublime e ubíquo donde mana todo o saber e justiça, estando o seu dever de defender o império da lei presente em todos os agentes da administração pública, apenas delegatários de poderes que, em termos simbólicos, residem exclusivamente na majestade do rei(43). Esta preeminência real aflorava dos mais diversos modos, seja no aparato da celebração dos fastos da monarquia(44) que, segundo pensava Pascal, infundia um misto de respeito/terror aos vassalos e suscitava a veneração popular(45), ou através do controlo/isenção das "precedências" no cerimonial cortesão, uma maneira subtil, mas bastante eficaz, de a coroa reforçar, reiterar ou retirar a sua confiança aos nobres, considerados individualmente, uma estratégia para obter dividendos políticos da proverbial rivalidade endémica existente entre as famílias brazonadas(46).

O principal expediente colocado à disposição dos reis absolutos para dominar os nobres era, no entanto, a nobilitação. É sabido que, mesmo no século XVIII, a conquista de um lugar na corte era a principal ambição dos nobres ou dos abastados burgueses, porque entrar ao serviço do rei significava, sem dúvida, o coroar de toda uma carreira burocrática, pois conferia um incontroverso prestígio social ao titular das funções e aos respectivos familiares(47). Por esse motivo, torna-se compreensível a ansiedade do cortesão Marie Du Bois, valet de chambre de Luís XIV, enquanto não viu confirmados pela regente Ana de åustria os benefícios e cargos que requeria para os seus herdeiros, impaciência aproveitada pela rainha para segurar a fidelidade do camareiro e vincar a situação de obséquio em que este ficou colocado após o deferimento da sua pretensão(48). A questão da atribuição de títulos nobiliárquicos e ofícios palatinos transformou-se, é certo, numa lâmina de dois gumes para o poder real, dado que, se num primeiro momento visou recompensar os serviços prestados ao rei (como o atestam várias cartas de nobilitação(49)), mais tarde tornou-se simultaneamente uma fonte de rendimentos para os delapidados cofres públicos, embora nunca se tenha transformado num acto puramente venal, dado ter sempre permanecido a intenção originária de premiar o mérito individual(50). Ainda assim, os critérios que levavam os monarcas Bourbons a enobrecerem um vassalo ou a confirmarem um título, deixaram de ser somente políticos e passaram também a ter conotações financeiras(51), uma circunstância que, dada a crónica crise orçamental do estado francês no final do Antigo Regime, aumentou necessariamente o número de nobilitações outorgadas com o único propósito de angariar fundos(52). Quem não via com bons olhos esta prática eram, como é óbvio, os nobres de antiga linhagem, até porque a achavam nociva para o prestígio da instituição real, que desta forma se tornava refém das ambições políticas da burguesia financeira, sempre disponível para comprar a peso de ouro ofícios e dignidades(53). Este perigo, embora existisse, não era excessivo, pois os reis jamais renunciaram, no caso da compra de ofícios, à prerrogativa de confirmarem ou não a transmissão hereditária desses empregos e dos privilégios a eles inerentes(54).

As críticas dirigidas pela alta nobreza francesa ao excesso de nobilitações permitidas pelos reis Bourbons, nunca pôs em causa, porém, a inequívoca admissão da primazia da realeza no organograma institucional da monarquia absoluta, aceitando-se sem contestação, conforme declarava o chanceler Séguier em meados do século XVII, ser o rei o fiador da protecção e administração do corpo da nação, uma ideia que nas vésperas da hecatombe de 1789 se achava enraizada no espírito dos juristas e demais agentes da administração real, todos eles unânimes em considerar legítimas as intenções reformistas de Luís XVI, embora o reconhecimento desse direito fosse interpretado de modo diverso pela nobreza conservadora e pelos ministros reformadores - sobretudo Turgot -, pois enquanto os primeiros consideravam que o monarca deveria em qualquer circunstância resguardar o establishment social e político, os segundos sustentavam a legitimidade de o rei revogar a legislação vigente; ou seja, assistia-lhe a liberdade plena de interpretar, substituir ou revogar as leis fundamentais do reino(55).

Em Portugal, relembrando a feliz expressão empregue por Jaime Cortesão no seu livro intitulado Alexandre Gusmão e o Tratado de Madrid, o rei era, como homem, superior ao regime que encarnava(56). De facto, esta concepção tornou-se um verdadeiro axioma político que vemos sucessivamente enunciado nas obras dos mais diversos publicistas do absolutismo português, chegando ainda a ser cautelosamente defendido em 1829 pelo liberal Almeida Garrett, numa passagem da duodécima carta de um tratado de educação dedicado à jovem rainha D. Maria II(57). Num curioso texto manuscrito datado de 1771, destinado a exaltar o governo de D. José I, o panegirista, depois de descrever a sociedade como uma grande máquina, na qual cada corpo social cumpre uma tarefa imprescindível para que resulte o regular movimento de todos, qualifica o príncipe de artífice perito preocupado em proteger o status quo social, através da implementação de reformas tendentes a evitar os abusos e a manter o útil e belo(58). Na época joanina, o ascendente da realeza precatou sempre a distinção social que a alta nobreza entendia ser seu apanágio, pois D. João V, imitando Luís XIV, usava politicamente a virtude da magnanimidade régia para, em simultâneo, proporcionar aos nobres os meios económicos necessários à manutenção do seu "estado"(59) e levá-los a aceitar pacificamente o jugo da coroa. Esta estratégia persuasiva sofreu, contudo, um manifesto revés durante o consulado pombalino(60), conforme é aceite pela generalidade dos historiadores, o que explica o revanchismo eclesiástico e nobiliárquico patente após a "Viradeira Mariana", dificilmente contido por D. Maria I, condenado pelo confessor da rainha - Frei Inácio de São Caetano -(61) e liminarmente rejeitado em inúmeros ensaios políticos que, não por acaso, permaneceram manuscritos e sem indicação do autor(62). A reacção da alta nobreza, por seu turno, também se fez sentir nesta época em diversos textos de cunho político, o mesmo sucedendo na regência de D. João, período a que se reporta um volumoso códice onde, apesar de se afirmar a independência do trono em relação ao clero, nobreza de corte e militares (encarecendo-se o dever de estes corpos respeitarem a preeminência do poder real), o redactor anónimo chama a atenção dos reis para o gravíssimo erro de exagerarem na nobilitação de homens sem qualidade e de os preferir no exercício das tarefas governativas(63).

Em 1814 o confronto entre as duas facções estava definitivamente instalado; nas páginas do Investigador Português em Inglaterra estalava a polémica entre o terceiro marquês de Penalva e António de Araújo de Azevedo - futuro conde da Barca(64) - em torno de uma carta que fora enviada pelo primeiro em 1806 ao Príncipe-Regente, onde se aconselhava D. João a preferir os Grandes para ministros e a afastar os indivíduos oriundos das classes populares, ainda que fossem letrados(65). Refugiando-se no anonimato, Araújo e Azevedo, que fora nomeado nesse ano ministro da marinha, retrucou vigorosamente, alegando não possuir a velha nobreza qualquer vantagem concreta sobre as demais classes para só ela ter o direito exclusivo de se ocupar dos assuntos políticos(66). Argumentava, ainda, ser bom que os monarcas absolutos se mantivessem equidistantes dos diferentes grupos sociais, para assim poderem avaliar melhor a competência dos candidatos aos postos de governo, premiando o mérito próprio em vez da condição social de nascimento, pois esta é um mero acidente que não outorga às pessoas quaisquer qualidades ou aptidões específicas para o desempenho de funções governativas(67). Foi por ter agido desse modo que, conforme frisava o polemista, D. José I tivera a lucidez de indigitar para primeiro-ministro um político de grande craveira como o fora o marquês de Pombal, salvando com essa decisão a dinastia de Bragança(68).

 

3. A construção da imagem perfeita do rei. O porte majestático e o retrato de aparato dos monarcas: "bela presença e majestade corporal dão autoridade". [André Du Chesne, Antiquités et recherches de la grandeur et majesté des rois de France (1609).]

Nomeado historiador e geógrafo da corte de Luís XIII, protegido do cardeal Richelieu, Du Chesne (1584-1640) estava suficientemente perto do sólio real para saber da importância do aparato na composição e propalação da imago ideal do soberano absoluto. A pompa da sagração do novo monarca em Reims(69), a magnificência da indumentária deste em momentos solenes (nomeadamente ao presidir a um Lit de Justice(70)), o decoro das entradas régias(71), a veneração das insignias reais, cujo desrespeito constituía por si só uma afronta à autoridade do rei(72), são temas amplamente expendidos nas Antiquités et recherches de la grandeur et majesté des rois de France, o panegírico que o cognominado "Pai da História" francesa dirigiu em 1609 ao Rei Cristianíssimo. Lendo atentamente esta obra de Du Chesne, logo nos apercebemos que os homens do século XX não inventaram muito em matéria de difusão política das "ideias-força" e da sua "esquematização" simbólica na pessoa do líder(73); o recurso às imagens para manipular as multidões e enquadrá-las politicamente, esteve sempre omnipresente na celebração dos fastos da realeza barroca, daí que a aparição da imago ficta ou imago picta do soberano fosse objecto da adoração popular, pois a imagem do soberano causava sempre uma viva emoção nos súbditos(74), que viam no rei a "encarnação" da própria monarquia.

Ainda hoje, quando admiramos nos palácios e museus os gigantescos retratos das cabeças coroadas pintados por Van Dick, Rigaud, Van Loo e tantos outros artistas áulicos, custa-nos a acreditar que aqueles reis eram seres humanos normais, com qualidades e defeitos, para não darmos inteiro crédito às memórias de Frederico II, onde o "iluminado" soberano prussiano quase só nos revela as paranóias e vícios dos monarcas europeus da seu tempo(75). Sabemos, no entanto, que os pintores de corte melhoravam intencionalmente a aparência física dos retratados por razões de ordem política e não apenas estéticas; na verdade, nem todos os reis tinham a esbelteza de Luís XV (que fascinava as damas de Versalhes(76) e espantou os italianos Casanova e Alfier(77)), ou a presença altiva e semblante autoritário de Luís XIV(78), que tanta falta fizeram ao franzino Luís XVI nos anos conturbados do seu reinado(79). Um caso paradigmático da importância da estatura e beleza fisionómica do rei, na perspectiva da propaganda política, é o de Filipe V de Espanha; o donaire do jovem duque de Anjou contrastava, sem dúvida, com a acanhada figura do enfezado Carlos II(80), seu antecessor, o que serviu de pretexto aos partidários da causa bourbónica na Guerra da Sucessão de Espanha para elogiarem a graciosidade, galanteria e o ar muito espanhol do bisneto de Filipe IV de Espanha(81).

A relevância política da formosura e boa compleição física dos soberanos não passou despercebida aos autores portugueses do século XVIII. Matias Aires, por exemplo, afirma nas Reflexões sobre a vaidade dos homens (1752), numa clara alusão ao novo rei D. José, que um semblante augusto, mas cheio de bondade, e agrado, foi o penhor precioso das nossas esperanças: venturoso, e claro presságio, pois se fez entender até pela mesma forma exterior(82). A robustez física dos monarcas surge em D. António Caetano de Sousa como um atributo inseparável da majestade real, algo que é insinuado em todas as descrições dos monarcas portugueses e expressamente mencionado nos casos de D. João III(83), D. Sebastião(84) e, sobretudo, de D. Pedro II, em relação ao qual o genealogista faz questão de salientar que a imponente constituição corporal deste príncipe o talhara para ser rei, embora não tivesse sido o primogénito, dando assim mais uma justificação para legitimar a deposição de D. Afonso VI, cujo aspecto exterior, por razões bem conhecidas, nem sequer é referido.

D. Pedro II foi, aliás, o nosso primeiro soberano a ver relacionado soberbo aspecto físico que possuía com as suas apregoadas capacidades intelectuais e qualidades humanas(85), uma opinião não inteiramente partilhada pelos autores estrangeiros, menos dispostos a exalçar a inteligência de "O Pacífico"(86). Com D. João V atinge-se, porém, o auge na exaltação da figura de um monarca português, chegando alguns viajantes franceses que o conheceram a não hesitar comparar a presença grandiosa deste rei com a de Luís XIV(87). Em 1749, desaparecido o encanto juvenil do rei após uma prolongada enfermidade, os panegiristas ainda persistiam em gabar a pulcritude do "Magnânimo" como se ela ainda existisse e espelhasse as virtudes próprias(88). Logo após o falecimento de D. João V, não foram raros os elogios fúnebres que evocavam com saudade a perfeição apolínea do monarca defunto(89).

Na segunda metade do século XVIII os reis portugueses parecem ter perdido o garbo destes seus dois imediatos antecessores. D. José e D. João VI, rotundos e flácidos, aparentavam uma indolência que estava longe do porte atlético de D. Pedro II e do ar enérgico de D. João V. Quanto a D. Maria I, também não abundam testemunhos abonatórios da sua beleza feminil, mas talvez isso suceda por uma questão de respeitosa contenção e pudor dos encomiadores(90), pois o cortês William Beckford, sempre exigente nas apreciações que faz de terceiros, reconheceu na rainha atitudes "características da majestade"(91).

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A centralização política e a curialização da nobreza nas monarquias absolutas, tornou menos frequentes e mais curtas as viagens realizadas pelos soberanos europeus dos séculos XVII e XVIII. As constantes deslocações e longas deambulações dos reis medievais (hoje melhor conhecidas após a publicação de vários estudos pormenorizados sobre os itinerários régios), certificam-nos da existência na Idade Média e alvores do Renascimento de uma administração nómada que circulava em áreas geográficas relativamente extensas, tendo em consideração a precaridade dos caminhos e ausência de meios técnicos para vencer as distâncias com celeridade. Nesta conformidade, embora reconhecendo que vastas regiões permaneceram distantes da administração directa do poder real - locais recônditos onde os vassalos humildes só poderiam ouvir descrições da imagem do rei ou notícias do quotidiano cortesão através dos jograis que calcorreavam as feiras de todo o reino a anunciar as novidades em verso (leiam-se os famosos romanceiros trecentistas e quatrocentistas) -, afigura-se-nos, ainda assim, ter sido mais fácil aos súbditos contactarem pessoalmente com o soberano nessas eras remotas do que posteriormente, quando os monarcas absolutos se enclausuraram nos seus palácios e passaram a gerir com prudência as aparições em público. A melhor forma de obviar aos inconvenientes resultantes deste afastamento físico, era incrementar a presença simbólica do rei através da exibição do seu retrato, uma maneira convincente de os monarcas deixarem a sua boa memória, como argutamente percebeu Francisco de Holanda no tratado Da ciência do desenho (1571)(92).

A representação do rei em quadros ou esculturas tinha a função política de assegurar a omnipresença simbólica do sumo imperante, objectivo que levava os artistas a procurarem apresentar não apenas as virtudes reais, mas também a tentar conferir às suas obras um vibrante esplendor, tendente a infundir respeito nos súbditos e a suscitar a reverência destes(93). Ambos os propósitos estão visivelmente presentes nos retratos de Filipe IV e Luís XIV pintados, respectivamente, por Velásquez (1636) e Rigaud (1701); não se julgue, porém, que apenas a gente humilde ficava extasiada perante estas sumptuosas imagens da realeza, pois também os nobres se deixavam maravilhar, como sucedeu ao ilustre e culto Saavedra Fajardo no dia em que, entrando na igreja madrilena de San Felipe el Real, contemplou e reverenciou o movimento airoso e expressão majestosa de Filipe IV na já mencionada obra velasquiana(94). Este sentimento de acatamento que a grandeza e gravidade da imagem do soberano provocava nos vassalos, surge bem testificado na atitude de encantamento e submissão sentida pelo provinciano Florindo (personagem de uma écloga de Joaquim São Pedro de Alcântara) quando pela primeira vez, do meio da chusma de curiosos, conseguiu avistar a estátua equestre de D. José I no Terreiro do Paço(95).

As monumentais praças reais, atributo máximo do urbanismo francês dos séculos XVII e XVIII(96), que se difundiram por toda a Europa iluminista(97), visavam, a um tempo, promover o embelezamento das cidades e concorrer para a glorificação do monarca absoluto(98). No Portugal josefino a influência francesa também foi, neste particular, notória em todos os sentidos, não só no concernente às técnicas utilizadas na fundição da estátua equestre de D. José I(99), mas sobretudo, conforme salienta Machado de Castro, no respeitante à maneira como se figura a alteza do rei(100), obtida através de uma perfeita simbiose entre a atitude e acção do herói retratado(101), demonstrando-se na segunda, qualificada de épica pelo escultor régio, o Carácter, Qualidade, Emprego, e Estado do personalidade homenageada(102). Anos mais tarde, num projecto de estátua pedestre de D. João VI destinada a ser erigida no Rio de Janeiro, Machado de Castro tornava a insistir neste último ponto, considerado-o um atributo essencial do elogio figurado(103) que este género de monumentos em honra dos reis devem sugerir em termos plásticos(104). Por conseguinte, o panegírico da realeza realizado pelos escultores setecentistas assenta em pressupostos políticos bem definidos, que decorrem do papel social atribuído às elites, apesar de este ser em regra assumidamente fictício, pois tem a ver com a memória histórica - naturalmente mitificada - das funções desempenhadas pelos poderosos em épocas recuadas(105). No caso do rei, este desfasamento da realidade reveste-se de um maior alcance político-ideológico, pois a mistura de símbolos do passado com os do presente, contribui poderosamente para a formação de uma imagem compósita do sumo imperante destinada a afiançar a preeminência institucional da realeza absoluta(106), facto que torna as esculturas de aparato dos reis setecentistas autênticos objectos ficcionais dedicados à glorificação do poder real, como se pode constatar no famoso busto de D. João V executado pelo escultor romano Alessandro Giusti(107).

O zelo posto na representação dos monarcas era tão excessivo que o genial Bernini viu recusada, em 1670, a sua admirável estátua equestre de Luís XIV [Figs. 2 e 3], pela simples razão de o monarca esboçar um sorriso considerado indecoroso e impróprio da dignidade de um rei de França(108). Esta rejeição não se tratou de um caso pontual, explicado pela conhecida mania das grandezas que os franceses sempre alardeiam em matéria protocolar, pois em Portugal, no ano de 1784, durante a exposição pública dos quadros de Pompeo Batoni destinados à decoração da Basílica da Estrela, circulou um pasquim com críticas acerbas aos quadros do afamado pintor neoclássico romano, especialmente dirigidas à forma indigna como fora retratada D. Maria I na tela onde a rainha doa a Igreja do Coração de Jesus às Carmelitas Descalças(109) [Fig. 4]. Estas preocupações, à primeira vista um pouco extremas, tornam-se compreensíveis se valorizarmos as implicações políticas do retrato do soberano nas sociedades de Antigo Regime, observáveis nos mais pequenos pormenores, seja nas pinturas que nos mostram o rei em pose majestática ou naquelas que revelam os momentos prosaicos do seu quotidiano (neste aspecto os retratos de Carlos I de Stuart são modelos consumados e, numa perspectiva cronológica, precursores(110)). Essa incidência político-ideológico justifica, aliás, o cuidado posto pela Academia Real da História Portuguesa na discussão do projecto de retrato oficial do Príncipe do Brasil (futuro rei D. José I), tendo os marqueses de Abrantes, Alegrete, Fronteira e o conde da Ericeira, sido unânimes em considerar que os símbolos reais só poderiam aparecer no retrato do soberano, para manter intacta a preponderância do poder real(111).

A utilização e disposição das armas reais nas representações dos monarcas, não era um preciosismo que só inquietava os ilustres académicos portugueses. Os retratistas das cortes bourbónicas, com efeito, foram os primeiros a escolher criteriosamente todos os adereços que paramentavam o retrato de aparato do rei e a atribuir-lhes um significado político concreto(112), preocupando-se igualmente em realçar a beleza do soberano(113), conscientes de que para os povos o aspecto físico constituía o principal sinal exterior das virtudes e qualidades de um governante(114); ou seja, o sinal exterior da sua natural aptidão para desempenhar funções de relevo(115). Além disso, em sociedades onde a percentagem de analfabetos era muitíssimo elevada e limitado o acesso da generalidade dos súbditos ao contacto visual com o sumo imperante, a ubiquidade da pessoa do rei realizava-se, preferencialmente, através da difusão da sua imagem de aparato, fosse através da exibição pública do seu retrato e das estátuas sediadas nas praças reais, ou da circulação de moedas e medalhas(116), também elas repletas de alegorias e emblemas clássicos destinados a imprimir no espírito do povo uma sensação de êxtase perante o fausto do poder real(117).

É precisamente esse o fito do artífice que concebeu dois projectos de medalhas destinadas a enaltecer D. José I, onde aparecem hieróglifos como o ara (microcosmos catalizador do sagrado(118)), a pirâmide encimada pelo disco solar (antigo símbolo ascensional de identificação dos reis com o deus-Sol(119)) e o ramo de oliveira (significando a paz, fecundidade, purificação, força, vitória e recompensa(120)), que servem de enquadramento ao agradecimento devido por todo o reino e, em particular, pela cidade de Lisboa, ao esclarecido governo do monarca preiteado(121).