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Sua Majestade Fidelíssima

SMF - Parte I - Capítulo IV

A INALIENABILIDADE DA POTESTADE REAL E O PATRIARCALISMO DA REALEZA CRISTÃ

 

1. A glorificação da monarquia absoluta: "A unidade conserva as coisas do mundo, ao mesmo tempo que as extingue a divisão, e se acaba tudo" [Diogo Guerreiro Camacho Aboim, Escola moral, política, cristã e jurídica, edição de 1733.]

Olhemos de relance o mapa político da Europa no começo da segunda metade do século XVIII. As monarquias predominam sobre as repúblicas, apenas representadas nos minúsculos estados itálicos (Génova e Veneza), helvético e holandês, territórios exíguos cercados por reinos imensos e grandiosos impérios. Seria, porém, uma ilusão considerar estes governos republicanos autênticas democracias; na verdade, estavam aquém de ser geridos de acordo com a expressão da vontade popular, tal como hoje a entendemos, pois o que neles prosperava era o poder indisputado de uma aristocracia que, adoptando um procedimento oligárquico, retirava na prática a possibilidade de o povo exercer os seus direitos cívicos. Os habitantes das Províncias-Unidas, sujeitos a uma constituição política quase monárquica, não possuíam muito mais liberdade do que os súbditos alemães dos principados vizinhos, passando-se o mesmo com os venezianos e genoveses em relação aos romanos e florentinos. Somente os genebrinos pareciam usufruir de maiores prerrogativas institucionais.

As monarquias estavam, também elas, longe de obedecer a um critério uniforme. O Sacro Império Romano-Germânico e a Polónia escolhiam os seus reis, mas enquanto a Dieta polaca exercia efectivamente esse poder electivo(1), os príncipes alemães limitavam-se a ratificar a transmissão hereditária da coroa imperial nos sucessivos representantes da dinastia dos Habsburgos(2). A França, Espanha, Portugal, Suécia, Dinamarca, Prússia, Piemonte e Reino das Duas Sicílias, eram monarquias absolutas hereditárias, mas existiam diferenças claras na forma como as instituições funcionavam no quotidiano, sendo certo que nenhum dos soberanos destas países alguma vez ousou imitar a atitude autocrática dos czares russos ou despótica dos sultões otomanos(3). A Inglaterra era o único reino onde o monarca não se assumia como absoluto e aceitava compartir a administração com os parlamentares, mas também neste caso é preferível não exagerar sobre a liberdade dos britânicos, tendo em consideração que o poder decisório e de iniciativa legislativa eram pertença exclusiva do rei e da Câmara dos Lordes, competindo unicamente aos Comuns ratificar as decisões dos primeiros(4).

É inquestionável que desde o terceiro quartel do século XVII até ao advento da Revolução Francesa, os partidários da monarquia absoluta recriminaram sempre os excessos populistas dos regimes republicanos, nomeadamente os cometidos pelo despótico Protectorado de Cromwell, responsável pelo inominável desacato de julgar e condenar à morte um soberano legítimo(5). A periclitância do república parlamentar inglesa, a manifesta inabilidade da sua política diplomática (fundada na constante ameaça do uso da força), apartava a Grã-Bretanha do concerto das nações civilizadas - como salientava em 1650 o príncipe D. Teodósio numa importante reunião do Conselho de Estado de D. João IV(6) -, mostrando à saciedade ser a monarquia, devido à sua antiguidade, a que garantia aos vassalos segurança e estabilidade, conforme escrevera em 1599 o teólogo espanhol Juan de Mariana no De Rege(7). É, aliás, estribado nas ideias dos melhores publicistas seus contemporâneos que o herdeiro da coroa portuguesa, aproveitando o vocabulário musical (cujo sentido figurado ele e o seu pai bem conheciam), discorre sobre as fragilidades do estado misto estabelecido em Londres, onde as vozes se erguiam dissonantes e sem tempero, pondo em perigo a harmonia necessária ao bom governo das sociedades civis(8), um inconveniente já detectado por Hobbes no Leviatã(9) e Saavedra Fajardo nas Introduções à política, no capítulo onde o diplomata murciano pretere os sistemas democrático e oligárquico, dando a primazia ao monárquico, por trazer menores inconvenientes(10).

A legitimação histórica da monarquia absoluta e hereditária foi alvo de profunda meditação por parte dos pensadores políticos seiscentistas, em especial de Sir Robert Filmer, autor de obras que circularam manuscritas nos mentideros realistas ingleses. Com efeito, foi no conturbado reinado de Carlos I de Stuart que este notável do condado de Kent redigiu o Patriarca, ou o poder natural dos reis - numa altura em que a resistência popular contra a coroa alastrava por toda a Inglaterra (pelo facto de o rei pretender lançar novos impostos sem a anuência do parlamento, entretanto dissolvido por decisão do monarca) -, onde advoga, mediante a hábil interpretação de Aristóteles(11) e imbuído de uma visão tendenciosa da Antiguidade greco-latina, ser sem dúvida a monarquia a maneira mais fácil e eficaz de governar, porque só a força política de um soberano que disfruta de legitimidade dinástica e detém a exclusividade do poder conserva a estabilidade(12). Para o demonstrar, Filmer distorce propositadamente a objectividade histórica, elogiando a pureza dos príncipios políticos e morais existentes nas fases do despotismo real aqueu e do nascimento da polis grega, os quais, em seu entender, foram pervertidos nas épocas arcaica e clássica pela devassidão, ambição e espírito de facção, de onde resultaram tiranias decadentes, sanguinárias e transitórias, que ditaram a ruína da cidade-estado helénica(13). No caso de Roma, detentora de um imenso império que Filmer reconhece ter sido praticamente todo conquistado durante a vigência do regime republicano, ele recorda as origens monárquicas da cidade do Lácio sem mencionar as vilezas infligidas pelo último rei romano (Tarquínio o Soberbo) à honrada Lucrécia (um tema bastante em voga na literatura e pintura barrocas), passando depois a verberar a instabilidade política que campeou durante a república romana(14), temporariamente mitigada quando algum ditador, beneficiando do seu prestígio pessoal, conseguia agir como um autêntico rei. Valendo-se de novo do pensamento político aristotélico, Filmer admite que as instituições republicanas só tiveram alguma eficiência no governo da urbe porque esta abrangia uma pequena área geográfica(15), mas revelaram-se totalmente inadequadas para administrar um império colossal, razão por que os romanos tiveram de aceitar implicitamente a restauração do poder monárquico quando outorgaram a Augusto o título imperial(16).

Filmer discordava dos escolásticos tardios, em particular dos jesuítas Belarmino e Suárez, no concernente às teses contratualistas da origem da sociedade civil, porque não acreditava na possibilidade de terem existido comunidades pristinas constituídas por pessoas absolutamente livres e independentes entre si. Nesta conformidade, a teoria do pacto inicial estabelecido entre o sumo imperante e os súbditos afigurava-se-lhe absurda, por estar persuadido que desde sempre os homens haviam nascido desiguais e subjugados, para além do facto de nesses tempos remotos os indivíduos não terem capacidade intelectual ou organização social que lhes permitisse convocar uma assembleia magna destinada a aclamar um soberano, para nele delegarem, em troca da celebração expressa ou tácita de um acordo prévio, a parcela de poder pertencente a cada um deles(17). De modo diverso pensava Bossuet, embora não encontremos na sua Política tirada das próprias palavras da Sagrada Escritura um excessivo entusiasmo pelas concepções mediatas da origem divina do poder real, propugnadas no século XVII, ainda que com fins díspares, por sectores ideologica e politicamente tão distintos como o eram os monarcómacos e os jusnaturalistas. No caso do bispo de Meaux, acérrimo defensor da monarquia absoluta, hereditária e sálica(18), o estado de natureza foi um ápice histórico, pois, segundo revela a Bíblia, a generalidade dos povos primitivos submeteram-se rapidamente à autoridade de um monarca(19), fazendo-o por consentimento próprio ou sendo constrangidos a isso pelo uso legítimo, ainda que tirânico, do direito de conquista(20).

Percebe-se sem dificuldade que Bossuet não deseja embrenhar-se na complexa questão da constituição da sociedade civil. Quase não cita os teólogos ou filósofos, contenta-se em seguir de perto o texto bíblico e, com evidentes preocupações didácticas, explica ao seu instruendo, o delfim (filho de Luís XIV), as vantagens de os seres humanos coexistirem em sociedade, chamando-lhe a atenção para a circunstância de todos eles serem irmãos aos olhos de Deus, estando por isso obrigados a amarem-se e protegerem-se mutuamente(21). Contudo, as comunidades humanas podem perecer por causa das paixões individuais(22), e a possibilidade de serem destruídas aumenta com o aparecimento de povoados rivais(23), dois perigos que justificam a existência de um poder terreno, disposto a regular as relações entre as diferentes comunidades humanas e a pôr cobro à violência natural dos homens(24). Numa sociedade bem organizada, pondera Bossuet, cada um abdica de obter pela força a satisfação dos seus desejos, e isso não significa que fique indefeso, antes pelo contrário, essa cedência fortalece-o porque ele passa a beneficiar do socorro da sociedade em caso de perigo(25). Acima de tudo, o exercício legítimo da autoridade cauciona a perpetuidade das nações, conforme compreendeu Moisés quando, pressentindo a próximidade da morte, pediu a Javé que lhe indicasse um sucessor, desejo que foi prontamente atendido, pois Deus pretendeu mostrar que a mortalidade dos reis não implica a mudança ou suspensão do governo(26).

Estas explicações preliminares dão a Bossuet a oportunidade de elucidar o seu real aluno sobre os motivos que, em seu entender, lhe permitiam considerar o regime monárquico absoluto como sendo o mais ajustado às precisões dos homens e conforme aos desejos do Altíssimo. Qualificando o rei de vigário de Deus, investido por Este da missão sagrada de assegurar de maneira coerciva a justiça e a paz pública - temperando a inflexibilidade com a misericórdia -(27), o preceptor do Grande Delfim conclui, esteado no Antigo Testamento, que a realeza hereditária mereceu desde o início o beneplácito divino, dado ter sido decalcada na forma como Deus regeu os céus e a terra desde o início da criação do mundo(28).

Em Portugal a defesa sistemática da monarquia como o melhor modelo governativo e o mais adaptado à realidade portuguesa, remonta ao primeiro lustro da restauração da independência nacional e subsistiu até meados do nosso século, arrebatando os saudosos do absolutismo durante o período liberal(29) e os nostálgicos da monarquia nas primeiras décadas do Estado Novo(30). A maioria das conclusões dos nossos compendiaristas seiscentistas a este respeito não são reflexões devidamente amadurecidas, mas sim afirmações categóricas influenciadas por estribilhos escolásticos da escolástica (repisados vezes sem conta); ou seja, verdades indiscutíveis que levam António Carvalho de Parada a escrever na Arte de reinar (1644) que o regime monárquico é o mais perfeito e excelente(31) e D. Sebastião César de Meneses (bispo-conde de Coimbra) na Suma política (1649) a partir do princípio - sem grandes delongas filosóficas, teológicas ou históricas - que a razão, e a experiência antepõem o governo monárquico aos demais(32). Outros, ainda, preferiram manter-se neutrais e não esclarecem as suas opções, limitando-se, como o faz Frei Jacinto de Deus na Braquilogia de Príncipes (1671), a reconhecer a imprescindibilidade de existir um poder temporal e a enumerar as três espécies que ele na prática pode assumir(33).

No decurso do século XVIII a situação altera-se um pouco, deparando-se-nos alguns textos didácticos e políticos visando comprovar os méritos e virtudes da monarquia. Um dos excertos mais interessantes é o que se acha incluso na conhecida obra Apontamentos para a educação de um menino nobre [Fig. 106] de Martinho Mendonça de Pina e de Proença [Ver Anexo 12], que faz recuar a 1734, alguns anos antes da ascensão ao poder de Sebastião José de Carvalho e Melo, a data da recepção e difusão em Portugal do jusnaturalismo pufendorfiano (recomenda-se, inclusive, a feitura de um "compêndio" baseado no tratado Dever do homem e do cidadão, publicado em 1673 por Samuel Pufendorf), pormenor que talvez explique a reedição do livro em 1761, pois ele estava em perfeita consonância com os princípios teóricos que informavam as doutrinas pombalistas. No respeitante à defesa e louvor do regime monárquico, Martinho de Proença exorta os mestres a incutirem nos jovens fidalgos a ideia de que a sociedade civil é uma necessidade imperativa, ajustada aos desígnios divinos, e tanto mais de acordo com eles se nela for aceite a jurisdição suprema do soberano, estimada como uma das maiores vantagens da monarquia; num segundo momento, o pedagogo incita a que se demonstre a veracidade desta asserção por intermédio do conhecimento do direito romano e da leitura do Génesis, onde o estudante poderá constatar o ascendente do pater familias sobre a sua progénie e de como esse domínio patriarcal viabilizou o posterior estabelecimento das sociedades civis, dando origem a múltiplas formas de governo, é certo, mas tornando evidente que, de todas elas, a monárquica absoluta era a mais apropriada ao efectivo exercício da autoridade, porque depositando no rei a plenitude supremo império, permite reforçar a unidade da cabeça moral do povo, cuja vontade interpretativa inclui a de todos os particulares, e a cujos dictames devem ceder os mais juízos, um poder inconcusso que permite aos monarcas absolutistas assegurarem a equanimidade na interpretação das leis e imparcialidade na sua aplicação. É este sentido de equilíbrio, só possível quando existe um poder legítimo e totalmente independente de qualquer outra entidade terrena, que evita as crueldades e injustiças comuns nas tiranias oligárquicas ou os desmandos resultantes das bárbaras resoluções da plebe.

Exactamente noventa anos passados sobre a primeira edição dos Apontamentos para a educação de um menino nobre, em 1824, no rescaldo da Vilafrancada e da Abrilada (intentonas realistas destinadas a devolver a D. João VI os seus "inauferíveis" direitos majestáticos), saíam do prelo Os caracteres da monarquia de António Joaquim de Gouveia Pinto, uma obra apostada em provar, através da enumeração das qualidades da monarquia absoluta, ser esta o melhor sistema político. A preeminência do absolutismo régio assenta, no entender de Gouveia Pinto, em quinze caracteres distintivos - antiguidade, independência, unidade, bondade, duração, liberdade, bens, justiça, prémios, literatura, homens grandes, hereditariedade, poder absoluto de legislar, respeito pelas leis tradicionais e virtudes -, passíveis de serem classificados em dois grupos, um de índole qualitativa - conquanto tenha incidências bem concretas no quotidiano das sociedade humanas - e o outro de cunho claramente objectivo. No primeiro inscrevem-se os seguintes valores: ancianidade da instituição real (testemunho histórico da sua supremacia(34)); benevolência do ânimo do monarca e dos vassalos no seu mútuo relacionamento(35); preservação da moralidade pública e respeito pelos bons costumes(36); sádia emulação entre os súbditos para alcançarem títulos e distinções(37); revigoramento do espírito de serviço público que leva os magistrados a agirem com justiça e a permanecer imunes à corrupção(38); veneração e gosto pela cultura, a ciência e as artes(39). No segundo sobressaem a independência e unidade do exercício do poder régio(40), que conferem durabilidade às monarquias(41), sustêm as liberdades cívicas(42), propiciam a isenção no acto de legislar(43) e guardam as leis tradicionais do reino(44). Apesar de ter sido escrita no início do século XIX, encontramos nos Caracteres da monarquia uma concepção dos fundamentos da autoridade real que pouco difere das análises feitas pela moderna sociologia norte-americana sobre as bases do poder, onde os denominados Poder de Recompensa, Poder Coercivo, Poder Legítimo, Poder de Referência e Poder de Perito(45), têm significados intrínsecos muito próximos dos ideais políticos subsumidos nos "caracteres" enunciados por António Joaquim de Gouveia Pinto, sobretudo o direito e dever dos soberanos premiarem os seus vassalos mais insignes, a imposição coactiva das leis, a legitimidade dinástica firmada pela sucessão hereditária, a necessidade de os reis serem virtuosos para darem bons exemplos aos súbditos e a sua exclusiva competência legislativa.

A concentração do poder nas mãos dos monarcas nunca foi um assunto pacífico. Estamos mesmo convencidos de que a publicação ao longo do Antigo Regime de inúmeros tratados políticos apologistas do absolutismo régio, tinham a intenção de mentalizar uma opinião pública desde sempre temerosa dos perigos do despotismo(46). Em 1579, no Vindiciae, contra tyrannos, o autor huguenote enfatiza a prevalência das assembleias representativas do reino em relação ao trono(47), censurando a crescente prepotência dos reis(48); passadas algumas décadas, em plena Fronda dos Parlamentares de Paris (1648-1649), as elites católicas francesas já haviam acolhido as ideias monarcómacas que tinham norteado os calvinistas franceses nas guerras de religião(49) e, pela pena de Claude Joly (1607-1700), um dos seus líderes mais proeminentes, vociferava contra o opressivo governo do cardeal Mazarino e reclamava o retorno à genuinidade das leis fundamentais da monarquia francesa(50), subvertidas pela coroa que, desde o agitado ano de 1614(51) [Fig. 107], não mais voltara a convocar os Estados Gerais(52).

Os prosélitos franceses do absolutismo régio sempre temeram as interpretações abusivas que os príncipes e magistrados estavam habilitados a fazer das suas prerrogativas políticas no quadro de uma monarquia mista. De facto, preocupava-os pouco as diatribes de Spinoza contra o pendor tirânico da monarquia absoluta(53), as obscuras ideias de Leibniz sobre a indivisibilidade da soberania(54) ou o convencimento de Locke de que o poder real ilimitado era, por definição, uma forma política ilegítima(55), à qual os vassalos podiam e deviam opor o seu direito de resistência(56). O objectivo primordial dos pensadores absolutistas de seiscentos em França não consistia, por conseguinte, em contraditar os adversários externos, mas sim anular os inimigos internos, no intuito de controlar o inconformismo senhorial e erradicar os privilégios dos huguenotes, ambos atentatórios da centralização política e unidade administrativa da nação(57). É justamente esse o anelo de Jean Savaron ao escrever o Traité de la souveraineté du roi et de son royaume (1615) e De la souveraineté du roi et que Sa Majesté ne la peut soumettre à qui que ce soit ni aliener son domaine à perpetuité (1620) - editados em ocasiões marcadas por sublevações nobiliárquicas(58) -, dois títulos clarificadores onde este conselheiro de Luís XIII e senescal de Auvergne relembra aos nobres o seu dever de fidelidade para com a coroa(59) e enumera os princípios basilares da soberania do rei(60), que, por injunção divina, é inalienável e indivisível(61). Idêntico parecer exprime em 1650 Moise Amyraut no Discours de la Souveraineté des Roys (62) e Bossuet perto do ocaso do século XVII, mas neste último caso a dócil nobreza de Versalhes já não infunde qualquer receio; doravante, apenas se teme a possibilidade de os monarcas absolutos se tornarem tiranos(63), arrogando-se a um poder discricionário usado à revelia da razão(64).

Uma das desvantagens comparativas da monarquia em relação às demais "espécies de governo" era, concede Hobbes no Leviatã, a eventualidade de a coroa poder ser herdada por um inimputável(65), pois as regências debilitam o carácter absoluto do poder soberano(66), colocando em perigo, embora isso pareça paradoxal, a liberdade dos próprios súbditos(67). Hobbes não estava equivocado; na realidade, quando Luís XIV faleceu e o duque de Orleães se tornou regente durante a menoridade de Luís XV, alastrou a corrupção(68) e a grande nobreza procurou a todo o transe recuperar a influência política perdida no reinado anterior, não tendo obtido sucesso mais por incapacidade própria do que por mérito alheio(69). Ainda assim, essa reivindicação manteve-se bem viva até à eclosão da Revolução em 1789(70).

A unicidade do poder real em Portugal obteve o consenso quase geral entre os teóricos políticos portugueses do Antigo Regime. D. Luís da Cunha, no Testamento Político, chegou mesmo a sublinhar que a monarquia seria um regime perfeito se só os reis mandassem, sem serem dominados pelos validos, amantes e confessores(71). Esta ânsia de reservar o poder decisório ao arbítrio dos monarcas já merecera, anos antes, o apoio inequívoco de Diogo Guerreiro Camacho de Aboim na Escola moral, política, cristã e jurídica (1733), por ser o único modo de conservar a unidade do estado, a paz, o progresso e evitar o despotismo dos oligarcas(72), uma concepção que também estivera subjacente ao pedido formulado pelo representante do povo nas cortes de 1668, onde se discutiu a possibilidade do regente D. Pedro destronar Afonso VI e proclamar-se rei em vida deste(73).

O apelo à detenção privativa da soberania pelo rei era contemplada de uma forma meramente simbólica, pois reputava-se do senso comum que a complexidade das tarefas governativas exigia a assídua colaboração de um vasto conjunto de assessores. O monarca solitário estava, obviamente, impossibilitado de acudir a todas as exigências governativas, sendo forçosa a delegação do exercício efectivo dos poderes nos magistrados e conselheiros, conforme advertia em 1627 João Salgado de Araújo na Lei régia de Portugal(74). Essa cessão da soberania concreta, livremente consentida e sempre temporária, não afectava, em príncipio, a indivisibilidade do poder régio que, segundo afirma em 1655 Frei Manuel dos Anjos, era a pedra ângular da superioridade da monarquia(75), apesar de os monarcas deverem permanecer atentos à actuação dos seus comissários, evitando conceder-lhes honrarias e benefícios que aumentassem desmesuradamente o prestígio social e político destes, porque isso levaria à subestimação da grandeza real, conforme ainda alertava em finais de setecentos Francisco António de Novais Campos no Príncipe Perfeito(76).

Estas máximas políticas seiscentistas não perderam actualidade para os causídicos do reformismo pombalino, como bem o comprova a compilação feita por Bento Farinha de vários escritos políticos datados dos séculos XVI e XVII(77). Nesta conformidade, só podemos encarar como uma excepção a exaltação da diarquia romana feita pelo Padre Pereira de Figueiredo em O reinado do amor (1790)(78), mesmo assim ditada pelo preconceito misógino (implícito numa das disposições das leis fundamentais do reino) de que o poder de uma rainha (no caso vertente D. Maria I), ao invés do de um rei, deveria ser discretamente tutelado pelo seu marido (daí a probição de as soberanas portuguesas se consorciarem com um príncipe estrangeiro(79)).

Na segunda metade do século XVIII e primórdios do XIX, mormente durante as intentonas absolutistas contra o regime vintista, os publicistas portugueses persistiram em defender acerrimamente o princípio político da indivisibilidade e inalienabilidade do poder régio(80). Apenas Ribeiro dos Santos, em 1789, na sua famosa polémica com Pascoal José de Melo Freire sobre o Novo Código de Direito Público (elaborado por este último a pedido da coroa)(81), desempenhou em Portugal um papel similar ao que Jovellanos teve em Espanha quando, exilado na cartuxa maiorquina de Valldemossa, adaptou as teorias de Burke à especificidade espanhola e concebeu o poder de supremacia nacional, reconhecendo aos súbditos o direito de resistirem a um soberano que pretendesse desrespeitar o pacto constitutivo da sociedade civil ou as leis fundamentais da monarquia(82).

 

2. "Pater Patriae": "E na verdade não deve ser outra coisa o Rei, senão um pai comum de toda a república" [Frei Amador Arrais, "Diálogo V - Das condições e partes do bom príncipe" in Diálogos, Capítulo I. (1589)]

Na Hamburger Kunsthalle encontra-se exposto um belíssimo quadro do veneziano Sebastiano Ricci, pintado entre 1706 e 1708, que nos mostra Harpagos - conselheiro do rei meda Astyages - confiando o recém-nascido Ciro II à guarda do pastor Mitradates [Fig. 108]. A cena evoca um episódio lendário da vida do fundador do Império Persa, narrado nas Histórias de Heródoto(83), e o seu interesse para este estudo reside no facto de ele ainda aliciar os homens do século XVIII, confirmando a permanência da multissecular tradição de que os reis tinham muito a aprender com o bom procedimento dos pastores, como já afirmara o historiador grego(84), devendo proteger os vassalos com os mesmos desvelos prodigalizados por estes aos seus rebanhos(85). A imagem do rei "pastoreando" os vassalos não é, porém, uma invenção helénica, já que ela nos aparece na literatura hínica assiro-babilónica(86) e faz parte da cultura hebraica, sendo frequentemente referenciada no Antigo Testamento, onde os patriarcas do Génesis, à excepção de Esaú, são pastores (Abraão, Isaac e Jacob)(87); Moisés, no Êxodo, apascenta o rebanho do seu sogro Jetro quando ouve a voz de Deus saindo da "sarça ardente"(88), enquanto nos Números e Deuteronómio surge como aquele que conduz o seu rebanho - o Povo Eleito - para o melhor prado - a Terra Prometida -(89). Acresce, ainda, que no Livro de Josué e no Primeiro Livro dos Reis existe uma associação implícita entre os patriarcas do texto genesíaco e os chefes dos israelitas, nomeadamente quando Josué, o intrépido guerreiro que subjugou os cananeus, recorda Abraão(90) e, novamente, quando o Deus deste e do seu filho Isaac é invocado pelo profeta Elias para destruir os seguidores de Baal e pôr fim à grande seca(91).

Parece-nos incontroverso que o pensamento político medieval e moderno se inspirou directamente na Sagrada Escritura ao comparar o dever dos monarcas de ampararem os súbditos com o dos pastores de guardarem as ovelhas. Cristina de Pisa, no Livro do corpo político, quase decalca os versículos bíblicos ao aconselhar o rei a imitar o "Bom Pastor" e o exorta a saber escolher os ajudantes - como o fez Labão em relação a Jacob(92) -, no caso de a adua ser tão numerosa que se torne impossível a um só acorrer a todas as mínguas para a resguardar(93). O autor do Vindiciae contra tyrannos, por seu turno, apoiado em diversas passagens dos Livros Históricos, remete o soberano para a posição do simples pastor que, à semelhança de Moisés, foi incumbido pelo proprietário (Deus) de reger o seu rebanho (o povo cristão)(94). Bossuet, na Política tirada das próprias palavras da Sagrada Escritura, recorda ao Grande Delfim - cuja tutoria lhe estava confiada - a ordem dada pelo Omnipotente a David para "apascentar" o Povo Eleito e tornar-se rei de Israel(95).

A figura idealizada do rei pastor também foi glosada pelos autores portugueses do Renascimento, onde ocorre quase sempre associada à concepção paternal do poder real(96), uma conexão que ainda assoma em Espanha no final do século XVIII(97), embora nesta época já se faça uma súbtil distinção entre os arquétipos soberano/pastor e monarca/pai(98). O paternalismo régio foi, sem dúvida, para as três grandes monarquias católicas - francesa, espanhola e portuguesa -, o seu principal paradigma(99), que se manteve bem vivo até ao declínio do Antigo Regime(100) - particularmente em Portugal [Ver Anexo 22, Fls. 4-4v e 10v] -, razão por que dedicaremos uma maior atenção a este assunto. A metáfora do rei "patriarca" - considerada na tipologia de Redl como a primeira das dez "pessoas centrais" em torno das quais se tecem laços de afectividade/dependência que estruturam e caracterizam o poder em sentido lato(101) -, radica-se, simultaneamente, na deuterose bíblica(102) e no pensamento greco-latino, aparecendo nas obras dos filósofos neopitagóricos do período helenístico (século I a.C.) e dos juristas romanos das primeiras centúrias da época imperial, conquanto nenhum deles tenha atribuído ao Princeps, na sua qualidade de "Pai da Pátria", a detenção de um poder absoluto(103), conforme viria a acontecer de maneira cada vez mais notória a partir do período tardo-medieval(104).

A forma tendencialmente autoritária como os soberanos centralizadores dos séculos XV e XVI exerceram este poder paternal explica, decerto, a contestação implícita deste princípio político pelo autor do Vindiciae contra tyrannos, defensor da ideia de serem os súbditos irmãos e não escravos do rei, motivo por que atribui a este o estatuto mais igualitário de Primus inter Pares(105). Esta posição pouco ortodoxa, não foi corroborada pela generalidade dos pensadores políticos do Renascimento, que preferiram ver no rei um pai bondoso, acarinhado por todos os vassalos, como escrevia em 1484 Francesco Patrizi no De regno et regis institutione, uma obra de feição declaradamente ciropédica(106). Recuperou-se, por conseguinte, a edificante noção helenística e romana de Pater Patriae, que encontrou grande receptividade nos humanistas portugueses(107) - com relevo para D. Jerónimo Osório(108) - e foi elogiada pelos nossos mais insignes poetas, dramaturgos e teólogos quinhentistas, como é o caso de Camões em Os Lusíadas(109), António Ferreira na Castro(110) e Frei Amador Arrais no diálogo intitulado Das condições e partes do bom príncipe(111).

Em meados do século XVII, o jovem Luís XIV, liberto dos tristes acontecimentos da Fronda, encarou o paternalismo régio como um dos múltiplos símbolos que permitiam reforçar o prestígio da coroa, afirmar o poder absoluto do Rei Cristianíssimo, reforçar a unidade da França, promover a concórdia nacional e colocar o interesse público acima dos privilégios privados(112). Esta visão altiva e essencialmente útil da questão(113), não foi partilhada pelos coevos e vindouros; Bossuet optou por colocar a tónica do seu discurso na benignidade régia como uma das obrigações decorrentes do paternalismo régio(114), os enciclopedistas não divergiram em substância do bispo de Meaux(115), enquanto o adolescente Luís XVI, ainda duque de Berry, antepôs o altruísmo deste conceito à argúcia política do seu famoso quarto avô, vendo no poder paternal dos reis uma boa oportunidade para o monarca manifestar, em todas as decisões governativas, um sentimento terno de afeição para com súbditos, e não um pretexto para lhes impor deveres de lealdade(116). As conhecidas vicissitudes do reinado de Luís XVI, em larga medida decorrentes das pressões exercidas pelos interesses instalados sobre o condescendente e volúvel monarca, mostraram que a excessiva contemporização redundou numa inevitável fragilização do poder real(117).

O comprometimento de o rei amar e proteger os súbditos, tratando-os com razoável equidade, era um tema já clássico em termos de especulação política - o escritor renascentista Baldassare Castiglione consagrou-lhe um extenso parágrafo no quarto livro de O Perfeito Cortesão(118) -, mas durante o absolutismo ele assumiu em toda a Europa, da foz do Tejo aos montes Urales, contornos sociológicos que deram alento a comoções populares, rebeliões(119) e discursos inflamados - sobretudo sermões - que exortavam os reis a impedirem a opressão dos humildes pelos poderosos, sem contudo porem em causa a preeminência social destes; ou seja, preservando o status quo social vigente(120).

Em 1788, Joaquim José Caetano Pereira de Sousa publicou uma tradução em verso das Aventuras de Telémaco dedicada, significativamente, ao Principe do Brasil D. José, primogénito de D. Maria I [Fig. 109]. Em três das numerosas notas de comentário ao texto, na passagem onde Fénelon critica Luís XIV por se ter isolado dos súbditos, o tradutor português reprova a sisudez, desconfiança e credulidade do Rei-Sol, afirmando que essa atitude tornou o monarca uma criatura insensível, além de o ter colocado à mercê dos torpes interesses da lisonja cortesã(121). Esta advertência não era nova para os príncipes portugueses, pois desde meados do século XVII que a literatura política os vinha advertindo para as consequências nefastas de se afastarem do povo e apenas escutarem o círculo restrito dos seus colaboradores mais próximos(122), tornando-os muitas vezes injustos para com os súbditos porque desconheciam os seus anseios e dificuldades(123). É por terem em mente esta perigosa eventualidade, que os publicistas portugueses de seiscentos avisam os monarcas para não se fazerem temer pela plebe, esforçando-se por conquistar o amor dos vassalos, como dizia em 1644 o teólogo António Carvalho de Parada na Arte de reinar e em 1647 o jurista Jerónimo Freire Serrão no Discurso político(124), designadamente dando especial atenção às denúncias feitas pelos mais pobres e desvalidos em relação a qualquer desaforo cometido pelos seus superiores, uma atitude julgada imprescindível para o bom governo da monarquia na Política predicável e doutrina moral do bom governo do mundo de Frei Manuel dos Anjos(125). O bom rei não deve mesmo inibir ninguém de verberar a conduta dos ministros na sua presença, pois só desse modo pode prevenir a tirania, segundo diz Jerónimo Freire Serrão no Discurso Político(126). A condição de súbdito implica o dever de obediência e fidelidade ao rei, mas isso não significa, conforme declara o "irreverente" Luís Torres de Lima em Avisos do céu, sucessos de Portugal, que o povo seja subserviente, pois assiste-lhe o direito de desobedecer ao monarca se as ordens deste atentarem contra a honra de Deus e puserem em causa a consciência do bom cristão(127).

Os autores políticos do século XVIII compreenderam a perigosidade destas alegações, tendo procurado delimitar o alcance delas e moderar as suas previsíveis consequências quando postas em prática. Ribeiro dos Santos, no tratado pombalista De sacerdotio et imperio (1770), altera-lhes substancialmente o sentido ao colocar a questão religiosa no âmbito mais vasto da essência do próprio poder monárquico, retirando-lhe a natureza casuística que ela possuíra no pensamento político do século XVII, a qual legitimava a objecção de consciência e, consequentemente, dava ensejo à desobediência civil(128). Na época mariana nota-se uma oscilação entre estas duas atitudes opostas; por um lado, o confessor de D. Maria I, na boa tradição regalista do pombalismo político, reafirma o respeito e reverência devidos pelos súbditos aos príncipes(129), ao passo que as "fenelonianas" Aventuras de Diófanes de Teresa Margarida de Silva e Orta recuperam a ideia do monarca afável, sempre disposto a ouvir os vassalos(130). Esta visão amantética do relacionamento entre o rei e o povo perdurará até às vésperas do liberalismo; em 1818, na dedicatória dirigida a D. João VI por Frei Cláudio da Conceição no primeiro volume do Gabinete Histórico, a grandeza de um soberano ainda se "mede" pela intensidade do amor que lhe devotam os vassalos(131).

No Testamento político de D. Luís da Cunha, entre os quatro principais encargos reservados aos reis na sua qualidade de pai de famílias, incluem-se a responsabilidade de atalhar as dissensões entre os vassalos e o dever de conhecer a índole dos cortesãos, para poder desse modo cumprir a terceira obrigação, que é a de obstar ao alastramento da corrupção entre os poderosos. A quarta incumbência, porém, respeita ao compromisso de o monarca fomentar o bom governo económico do reino(132), começando desde logo por não permitir despesas exageradas na sua corte, mantendo equilibradas as finanças da casa real(133). O conselho dado aos reis para serem poupados e não esbanjarem os recursos do reino em ostentações supérfluas possui, é certo, um significado concreto para o mercantilista D. Luís da Cunha, mas não se trata de uma ideia inovadora, pois, no século XV, o Infante D. Pedro já apelava aos soberanos na Virtuosa Benfeitoria para, como pais dos seus próprios súbditos", proverem às mínguas das suas feitorias(134), um cuidado paternal que continuava a ser apregoado nos séculos XVII e XVIII, merecendo amplo destaque, por exemplo, no tratado teológico-político de Frei Manuel dos Anjos(135) e uma menção num panegírico comemorativo da aclamação de D. João V declamado num templo faialense por Frei João da Fé(136).

O sentimento de orfandade que afligia os súbditos quando o rei deles se apartava em tempos de crise política, foi uma das consequências desta visão paternalista da autoridade real. Em França, no século XVII, num dos momentos agudos da Fronda dos Príncipes (1650), Ana de Áustria retirou-se da capital na companhia do rei menor (Luís XIV), instalando-se de imediato uma ingente angústia na populaça parisiense(137); cento e cinquenta e sete anos depois os lisboetas experimentaram a mesma tristeza ao verem a esquadra real zarpar do Tejo rumo ao Brasil (1807), enquanto os súbditos brasileiros rejubilaram na recepção oferecida à família real nas cidades de S. Salvador da Baía e de S. Sebastião do Rio de Janeiro(138). O mais grave, no entanto, foi a circunstância de muitos portugueses terem interpretado mal a inopinada retirada da corte, deixando-se seduzir pelos sebastianistas que acusavam o Príncipe Regente de ter agido como um mau pai ao abandonar os súbditos à sua sorte num momento de desespero(139). Esta eventualidade não escapara a D. João, pois, já radicado no novo reino sul-americano, solicitou vários conselhos sobre o assunto, tendo recebido em 1816 um parecer tranquilizador de José Anselmo Correia Henriques onde este sustenta que os filhos obedientes entendem sempre as decisões do chefe de família(140).

Em Outubro de 1820, ainda não tinham decorrido dois meses sobre a data da revolução portuense, já D. João VI sabia que a compreensão e fidelidade dos vassalos não era incondicional; a imagem do virtuoso "Pai da Pátria" realçada num retrato pintado uma década antes por Domingos Sequeira [Fig. 113](141) suscitava agora fundadas dúvidas e favorecia a insubordinação, ponderando já alguns nobres a hipótese de entregarem o trono ao duque de Cadaval(142). Na corte do Rio de Janeiro havia mesmo quem recomendasse a D. João VI um regresso apressado a Lisboa para, na sua qualidade de pai benigno, restaurar a perdida confiança dos seus súbditos europeus(143). A indecisão do monarca sobre a melhor atitude a tomar naquela difícil conjuntura política explica, a nosso ver, a curiosa carta régia dirigida aos portugueses em finais de 1821 ou inícios de 1822, onde o soberano perdoa com paternal amor os actos irreflectidos entretanto cometidos pelos súbditos, mas promete punir como rei futuras demonstrações de desobediência [Ver Anexo 13]. Em suma, a crise do Antigo Regime português tornou patente a faceta intrinsecamente autoritária da noção patriarcalista do ofício régio(144), afectando a imagem de um poder real complacente com o povo e colocando definitivamente em causa a ideia de realeza paternal divulgada pelos pensadores políticos dos dois séculos precedentes, fundada no compromisso de o rei amar os súbditos sem restrições ou contrapartidas(145), abstendo-se de os sacrificar em função das suas ambições pessoais(146). O opróbrio passou a incidir, desde então, sobre os filhos insensatos que ousavam desafiar a autoridade paterna(147), numa evidente tentativa de reprimir os adeptos das novas ideologias revolucionárias(148).

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Foi na Grã-Bretanha jacobita que o paternalismo régio mais cedo manifestou os seus lineamentos autocráticos, nomeadamente nos escritos políticos de Jaime de Stuart e, sobretudo, no Patriarcha de Sir Robert Filmer - mais extremista neste aspecto do que os pensadores políticos seus compatriotas do início de seiscentos(149) -, escrito pouco antes do início da ominosa guerra civil de 1642-1649. No ano de 1598, em The trew law of free monarchies, o então monarca escocês Jaime VI reconhecia que o estatuto de Pater Patriae obrigava os reis o cumprirem certos deveres para com os súbditos, mas salientava o facto de ele implicar a completa submissão destes perante o trono(150), uma convicção reafirmada, quando já era soberano britânico, no discurso dirigido em 1610 ao Parlamento reunido em Whitehall(151).

O conservador Carlos I, sucessor de Jaime I, permaneceu sempre fiel a esta ideia, que ele acreditava poder restaurar o bom governo da época Tudor, da qual possuía uma visão deveras idílica. Os historiadores ingleses são unânimes em reconhecer que o segundo rei da dinastia Stuart esteve perto de atingir esse objectivo(152), mas a discórdia que a sua política fiscal feita à revelia do parlamento suscitou na generalidade da população, propiciou a insubordinação popular contra a coroa(153), uma situação julgada intolerável por Sir Robert Filmer que, baseando toda a sua argumentação no mando paternal dos reis, reprovava a felonia dos vassalos(154).

A evolução da conjuntura política inglesa após o triunfo da Gloriosa Revolução (1688), bastante peculiar na história da Europa Moderna, permite-nos entender os motivos da contestação dirigida por John Locke ao patriarcalismo "filmerista" em dois célebres tratados políticos editados em conjunto no ano de 1698 com um título suficientemente esclarecedor: Two treatises of government: in the former, the false principles and foundation of Sir Robert Filmer, and his followers, are detected and overthrown. The latter is an essay concerning the true original, extent, and end of civil-goverment(155). O filósofo empirista(156) começa por querer provar a falsidade da construção histórica de que Filmer se serve para legitimar o poder paternal dos reis no Patriarca e nas Observações sobre a Política de Aristóteles (publicadas em 1652, num desassombrado desafio dirigido à ditadura de Cromwell)(157); depois, afirma não existir nenhum versículo bíblico, ao invés do que escrevia Filmer, de onde se pudesse deduzir a preferência divina pela monarquia absoluta fundada no poder paternal dos soberanos(158), acabando por afirmar ser inconcebível confundir dois poderes tão distintos como o paternal e o político ou, ainda pior, utilizar essa confusão para defender a concessão de um domínio arbitrário aos monarcas absolutos(159).

Apesar da importância de Locke para o pensamento liberal clássico, a verdade é que as suas posições ideológicas tiveram escassa aceitação nas monarquias católicas setecentistas(160). O mesmo se passou, de resto, com os escritos de Sir Robert Filmer, cujas ideias políticas não aparecem referidas de forma consistente pelos publicistas absolutistas do continente. Estes, embora não negassem a possibilidade de os reis poderem fazer um uso autoritário do seu poder paternal, preferiram não colocar essa hipótese; os presbíteros de Valência afectos a Filipe V, por exemplo, num reino onde os privilégios autonómicos acabavam de ser sobranceiramente postergados pela coroa(161), optaram por proclamar nos seus sermões que as duras ordens reais não eram castigos cominados aos filhos ingratos por um soberano irado, mas sim o terno desejo de um "pai piedoso" em restabelecer, sem se poupar a fadigas, a boa administração e prosperidade económica, devolvendo aos valencianos a tranquilidade e abastança de outrora(162).

Nos reinos da Europa latina, as vozes só se ergueram em coro para acometer a autoridade real quando os monarcas se assumiram como "cidadãos" e transformaram os vassalos em "reis", parafraseando livremente uma frase dita noutro contexto pelo filho de Racine e citada por Joseph de Maistre em Considérations sur la France(163). Essa inversão de valores trouxe a calamidade revolucionária, perturbou a ordem social e subverteu os costumes, tornando inevitável, na opinião do miguelista Gama e Castro, o recurso a uma maior severidade e inflexibilidade régias para reverter a situação e restaurar o governo absoluto(164). A maioria dos monarcas constitucionais oitocentistas, a começar por Luís XVIII, tiveram a lucidez de não seguirem tal conselho, e os que o fizeram, como Carlos X de França, D. Miguel I de Portugal e Carlos V de Espanha (para o legitimismo carlista), conheceram as agruras do exílio, carregando consigo uma fama de hediondeza incompatível com a imagem benévola do Pater Patriae, um título magnífico que o imperador Augusto teve a sabedoria de só receber no fim da vida(165) e o seu sucessor Adriano, um incorrigível megalómano, recusou aceitar temporãmente(166).